quinta-feira, 29 de abril de 2010

PÓS-MODERNO

Alguém tem que fazer alguma coisa quando as coisas todas empacam e ficam de olhar bovino contra o alguém que nada faz. Concluindo pensamento tão esdrúxulo Tarsila saiu de si mesma e foi à luta que essa história de destino é coisa de maluco acomodado na estação olhando o trem passar sem estacionar.
Nas janelas do trem pessoas olham para fora como se a paisagem fosse feita de papel maché e não de natureza verdadeira e pulsante. Algumas até acenam num gesto sem graça e contraído com a mão mole e cheia de receios.
É possível que os vagões tenham ar condicionado e a cerração aqui fora não convide para descer e comer um pastel de vento na birosca meio sebosa no meio do nada, de vidinha parada embora cheia de vidas encruzilhadas e escondidas embaixo do edredom solitário.
A aparente falta de força se desenrolou e puxou com gana o manejo do desvio. O trem não teve outro jeito a não ser trocar de trilhos num solavanco desengonçado e contrafeito. As passageiros foram jogados para a frente e freados num repelão que tirou do lugar suas colunas tortas colocando um torcicolo duro e atado no pescoço.
Afinal era feriado e não tinham mesmo necessidade alguma de chegar a lugar nenhum.
O maquinista pensou que era o único a fazer alguma coisa neste momento e por isso parar ou não parar podia ser decisão sua. Quem estivesse dormitando não perceberia a diferença uma vez que a fumaça do trem nada moderno continuava fumegando e dando a impressão que o movimento continuava.
Na verdade estava enjoado de andar em círculos. Aquela linha era circular e há anos, talvez todos de sua vida, passava pelos mesmos campos e as mesmas ilhas de folhagem escura que não tinham idade alguma. Os telhados das estações continuavam vermelhos como se pintados naquele dia e as crianças acenavam o mesmo adeus.
Desceu e convidou para um café a moça de chapéu com uma flor do lado, toda vestida de cor de rosa enquanto as rosas do rosto estavam murchas e descoloridas. Para sua surpresa ela aceitou e sorriu como se estivesse acostumada a sorrir e se via nos cantos da boca de batom borrado que fazia tempo que o riso tinha fugido para os intestinos.
Entabularam uma conversa que mentia ser costumeira e fizeram afagos com palavras e gestos. Ele até colocou a mão sobre a mão enluvada da moça que não retirou e abriu os dedos gelados enlaçando os dele numa propriedade inadequado, mas muito desejada.
Num segundo beijavam-se na boca e ele sentiu um calor desconcertante, aquele mesmo que esperava encontrar, porém acreditava que não encontraria nunca.
Encontro é coisa difícil de ser encarada, já que força à posições e decisões, às vezes decúbito, onde se deseja dar não dando coisa nenhuma pelo medo de ver a rosa do chapéu murchar e as bochechas se tornarem vivas e rosadas. Isso transformando a espera e os trilhos circulares num vai para frente que pode assustar. Nunca se sabe quando terá uma vaca pastando lerdamente no meio dos dormentes forçando uma parada para descansar da reclamação costumeira e conhecida.
Tarsila ajeitou o chapéu e empoou o rosto sem se incomodar de fazê-lo apoiada no balcão enquanto o pastel olhava oleoso para ela e o homem examinava cada curva feita pelo seu corpo no espaço entre a pele e o tecido do vestido.
Romualdo era seu nome, pois esse é mesmo nome de maquinista. Pensou que nunca se sabe aonde pode levar o encontro com uma mulher dessas, feita de espasmos e toques. Nuvens e rocha.
Tarsila percebeu no ar insólito da cena o cheirinho dele e comentou em voz alta para demonstrar que estava presente no momento. Esticou o olho para o trem esperando que tivesse sumido para não levá-lo embora tão logo terminassem os preliminares ou continuares. Nunca se sabe aonde pode levar o encontro com um homem desse feito de desejo e de esconderijos.
Era uma mulher que tira da bolsa rocamboles de doce de leite, aqueles que mais se gosta e serve a gente num carinho delicado com os olhos postos nos nossos e então dá uma vontade grande de comer a boca e sentir os seios enconchados no peito. Romualdo sabia que ela concordaria com tudo sentindo no espaço entre cheiro e corpo toda a espera que vivera esperando um trem que parasse na estação e vendo apenas os fundos do último vagão.
Olhou para o outro lado da rua e percebeu o hotelzinho bem ajeitado, até com cara de casa de boneca e a convidou para descansarem fingindo dobra de conversa quando sua vontade era bem avessa e quisesse mesmo era desfrutar a flor do chapéu e o cheiro de alfazema que saia debaixo das saias.
Tarsila, enjoada de ser comedida e consequente, aceitou o convite e nem precisou fazer beicinho fingindo temor ou pudor, afinal estava tudo ali em cima do balcão e dentro das mãos dele, embora Romualdo fosse um nome que enrola a língua e não gostasse de nomes com U no meio. Nestes tempos modernos podia tudo e não se fez de rogada. Tirou as saias e abriu a blusa se dando sem reservas.
O trem estava parado então era certo que este maquinista viria para maquinar todos os dias de sua vida. Olhava para ele e percebia quanta ânsia de encontro havia nas pestanas meio marcadas por lágrimas decepcionadas loucas para encontrar o afago de uma mulher de chapéu.
O chapéu não tirou. Era bonito fazer amor de chapéu e podia permitir que o aroma da flor continuasse agindo sobre o homem. Brincou com os dedos dentro de seu cérebro e coração para ter certeza que o veria todas as vezes que parasse na estação. Esperar tornar-se-ia uma coisa boa e quente e conheceria o trem pelo nariz e a fumaça do cigarro que fumava antes e depois. E era Romualdo mesmo sem ter ainda encontrado um apelido condizente que soasse mais a carinho e não a palavrão.
Lá no trem as pessoas acordaram de todo e foram indagar por que o trem estava estacionado nesta estaçãozinha mais sem graça perdida no meio do caminho e retardando a chegada na estação que não chega nunca. Era bem nessa que queriam estar.
Puseram-se aos gritos de pega ladrão pensando que algum meliante (que é palavra bonita e elitista por isso a usaram) tivesse roubado o maquinista para possíveis acontecimentos verdadeiros o que não estava incluído na passagem.
Romualdo levou um susto e deu-se conta que tinha descido do trem e isso não estava em seu contrato de trabalho. Podia ficar sem o salário do mês e tinha criança para criar precisando de cadernos e sapatos. Tinha também uma mulher que usava avental e não tinha chapéu nenhum. Flor cortada e colocada no vaso até fenecer e ser atirada no canteiro para virar adubo e trazer outras flores para serem cortadas e irem para o vaso rachado sem ter tempo de fazer semente.
Colocou as roupas no ligeiro procurando o relógio que não sabia onde se escondera na pressa de tirar tudo que pudesse remetê-lo á realidade que não queria e era a única que tinha para viver. Sabia que sonho de fazer cócegas é coisa do céu de Ícaro e a verdade estava no céu de Galileu que afinal obedece a ordens sei lá de quem uma vez que esta mundo não tem ordem nenhuma.
Não se esqueceu de comer as coxinhas e tampouco de tomar café no bule dos lábios dela. Foi cortês, era um sujeito educado e jamais abusaria de uma mulher tão abusada sem agradecer depois.
Tarsila nem teve tempo de tirar o chapéu da cabeça e colocar as saias verde desmaiado para encobrir o vermelho vivo de entre as pernas ainda ferventes. Correu atrás dele para acenar um adeusinho e mandar beijos na ponta dos dedos, coisas que só a delicadeza faz quando sabe que não existe ponto final e logo vem outra viagem trazendo o Romualdo.
Enquanto os passageiros agitavam lenços vermelhos e vociferavam palavrões nenhum pouco delicados virou-se para trás e sorriu. O peito aquecido e a esperança desabrochando numa vontade louca de fazer de conta que voltaria.
Tarsila ficou olhando o trem retornando ao caminho circular e percebeu que nada voltaria.
A estação apagou-se por que era hora da Ave Maria e todos deveriam ir à igreja ouvir o padre falar que amor é pecado, o bom mesmo é sofrer a brochura dos dias. Só ela nos levará ao paraíso infernal dos anjos sem sexo ou nexo.
Será que passaria outro trem que não tivesse estrada curva e fosse para frente como se no horizonte pudesse encontrar um arco-íris?
Ajeitou o chapéu meio sem graça e sem certeza alguma. Sentou-se no banco esperando um maquinista que estivesse mesmo cansado e gostasse de viver numa estaçãozinha de fim de mundo onde tudo pode acontecer.
Quem sabe haveria uma estação chamada todo o sempre. Antiga o bastante para não viver a vida pós-moderna e sem graça que a gente só toca por que espeta um medo danado de as coisas sonhadas se realizarem impedindo os prédios de crescerem até rasgar o céu dos sonhos e das ilusões que se julgam perdidos, mas nunca estão.
Quando puxou a alavanca do desvio ao avistar o trem chegando, conseguiu ver nos olhos do maquinista uma chama esquisita de estou de saco cheio e o lenço vermelho do pescoço nem vacilou quando foi jogado em cima das engrenagens.
Resolveu não se apresentar e nem perguntar nome. Jogou longe o chapéu e ficou com a flor que colocou atrás da orelha. O hotelzinho abriu as portas que ficaram boquiabertas já que o casal não entrou e saiu a caminhar pelo campo enquanto os passageiros pediam socorro.
Só o capim alto soube o que aconteceu e foi para todo o sempre que quem acredita pode ainda viver contos de fadas nem um pouco modernos ou pós.

Vana Comissoli

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