sexta-feira, 30 de abril de 2010

PÓS MODERNO


Alguém tem que fazer alguma coisa quando as coisas todas empacam e ficam de olhar bovino contra o alguém que nada faz. Concluindo pensamento tão esdrúxulo Tarsila saiu de si mesma e foi à luta que essa história de destino é coisa de maluco acomodado na estação olhando o trem passar sem estacionar.
Nas janelas do trem pessoas olham para fora como se a paisagem fosse feita de papel maché e não de natureza verdadeira e pulsante. Algumas até acenam num gesto sem graça e contraído com a mão mole e cheia de receios.
É possível que os vagões tenham ar condicionado e a cerração aqui fora não convide para descer e comer um pastel de vento na birosca meio sebosa no meio do nada, de vidinha parada embora cheia de vidas encruzilhadas e escondidas embaixo do edredom solitário.
A aparente falta de força se desenrolou e puxou com gana o manejo do desvio. O trem não teve outro jeito a não ser trocar de trilhos num solavanco desengonçado e contrafeito. As passageiros foram jogados para a frente e freados num repelão que tirou do lugar suas colunas tortas colocando um torcicolo duro e atado no pescoço.
Afinal era feriado e não tinham mesmo necessidade alguma de chegar a lugar nenhum.
O maquinista pensou que era o único a fazer alguma coisa neste momento e por isso parar ou não parar podia ser decisão sua. Quem estivesse dormitando não perceberia a diferença uma vez que a fumaça do trem nada moderno continuava fumegando e dando a impressão que o movimento continuava.
Na verdade estava enjoado de andar em círculos. Aquela linha era circular e há anos, talvez todos de sua vida, passava pelos mesmos campos e as mesmas ilhas de folhagem escura que não tinham idade alguma. Os telhados das estações continuavam vermelhos como se pintados naquele dia e as crianças acenavam o mesmo adeus.
Desceu e convidou para um café a moça de chapéu com uma flor do lado, toda vestida de cor de rosa enquanto as rosas do rosto estavam murchas e descoloridas. Para sua surpresa ela aceitou e sorriu como se estivesse acostumada a sorrir e se via nos cantos da boca de batom borrado que fazia tempo que o riso tinha fugido para os intestinos.
Entabularam uma conversa que mentia ser costumeira e fizeram afagos com palavras e gestos. Ele até colocou a mão sobre a mão enluvada da moça que não retirou e abriu os dedos gelados enlaçando os dele numa propriedade inadequado, mas muito desejada.
Num segundo beijavam-se na boca e ele sentiu um calor desconcertante, aquele mesmo que esperava encontrar, porém acreditava que não encontraria nunca.
Encontro é coisa difícil de ser encarada, já que força à posições e decisões, às vezes decúbito, onde se deseja dar não dando coisa nenhuma pelo medo de ver a rosa do chapéu murchar e as bochechas se tornarem vivas e rosadas. Isso transformando a espera e os trilhos circulares num vai para frente que pode assustar. Nunca se sabe quando terá uma vaca pastando lerdamente no meio dos dormentes forçando uma parada para descansar da reclamação costumeira e conhecida.
Tarsila ajeitou o chapéu e empoou o rosto sem se incomodar de fazê-lo apoiada no balcão enquanto o pastel olhava oleoso para ela e o homem examinava cada curva feita pelo seu corpo no espaço entre a pele e o tecido do vestido.
Romualdo era seu nome, pois esse é mesmo nome de maquinista. Pensou que nunca se sabe aonde pode levar o encontro com uma mulher dessas, feita de espasmos e toques. Nuvens e rocha.
Tarsila percebeu no ar insólito da cena o cheirinho dele e comentou em voz alta para demonstrar que estava presente no momento. Esticou o olho para o trem esperando que tivesse sumido para não levá-lo embora tão logo terminassem os preliminares ou continuares. Nunca se sabe aonde pode levar o encontro com um homem desse feito de desejo e de esconderijos.
Era uma mulher que tira da bolsa rocamboles de doce de leite, aqueles que mais se gosta e serve a gente num carinho delicado com os olhos postos nos nossos e então dá uma vontade grande de comer a boca e sentir os seios enconchados no peito. Romualdo sabia que ela concordaria com tudo sentindo no espaço entre cheiro e corpo toda a espera que vivera esperando um trem que parasse na estação e vendo apenas os fundos do último vagão.
Olhou para o outro lado da rua e percebeu o hotelzinho bem ajeitado, até com cara de casa de boneca e a convidou para descansarem fingindo dobra de conversa quando sua vontade era bem avessa e quisesse mesmo era desfrutar a flor do chapéu e o cheiro de alfazema que saia debaixo das saias.
Tarsila, enjoada de ser comedida e consequente, aceitou o convite e nem precisou fazer beicinho fingindo temor ou pudor, afinal estava tudo ali em cima do balcão e dentro das mãos dele, embora Romualdo fosse um nome que enrola a língua e não gostasse de nomes com U no meio. Nestes tempos modernos podia tudo e não se fez de rogada. Tirou as saias e abriu a blusa se dando sem reservas.
O trem estava parado então era certo que este maquinista viria para maquinar todos os dias de sua vida. Olhava para ele e percebia quanta ânsia de encontro havia nas pestanas meio marcadas por lágrimas decepcionadas loucas para encontrar o afago de uma mulher de chapéu.
O chapéu não tirou. Era bonito fazer amor de chapéu e podia permitir que o aroma da flor continuasse agindo sobre o homem. Brincou com os dedos dentro de seu cérebro e coração para ter certeza que o veria todas as vezes que parasse na estação. Esperar tornar-se-ia uma coisa boa e quente e conheceria o trem pelo nariz e a fumaça do cigarro que fumava antes e depois. E era Romualdo mesmo sem ter ainda encontrado um apelido condizente que soasse mais a carinho e não a palavrão.
Lá no trem as pessoas acordaram de todo e foram indagar por que o trem estava estacionado nesta estaçãozinha mais sem graça perdida no meio do caminho e retardando a chegada na estação que não chega nunca. Era bem nessa que queriam estar.
Puseram-se aos gritos de pega ladrão pensando que algum meliante (que é palavra bonita e elitista por isso a usaram) tivesse roubado o maquinista para possíveis acontecimentos verdadeiros o que não estava incluído na passagem.
Romualdo levou um susto e deu-se conta que tinha descido do trem e isso não estava em seu contrato de trabalho. Podia ficar sem o salário do mês e tinha criança para criar precisando de cadernos e sapatos. Tinha também uma mulher que usava avental e não tinha chapéu nenhum. Flor cortada e colocada no vaso até fenecer e ser atirada no canteiro para virar adubo e trazer outras flores para serem cortadas e irem para o vaso rachado sem ter tempo de fazer semente.
Colocou as roupas no ligeiro procurando o relógio que não sabia onde se escondera na pressa de tirar tudo que pudesse remetê-lo á realidade que não queria e era a única que tinha para viver. Sabia que sonho de fazer cócegas é coisa do céu de Ícaro e a verdade estava no céu de Galileu que afinal obedece a ordens sei lá de quem uma vez que esta mundo não tem ordem nenhuma.
Não se esqueceu de comer as coxinhas e tampouco de tomar café no bule dos lábios dela. Foi cortês, era um sujeito educado e jamais abusaria de uma mulher tão abusada sem agradecer depois.
Tarsila nem teve tempo de tirar o chapéu da cabeça e colocar as saias verde desmaiado para encobrir o vermelho vivo de entre as pernas ainda ferventes. Correu atrás dele para acenar um adeusinho e mandar beijos na ponta dos dedos, coisas que só a delicadeza faz quando sabe que não existe ponto final e logo vem outra viagem trazendo o Romualdo.
Enquanto os passageiros agitavam lenços vermelhos e vociferavam palavrões nenhum pouco delicados virou-se para trás e sorriu. O peito aquecido e a esperança desabrochando numa vontade louca de fazer de conta que voltaria.
Tarsila ficou olhando o trem retornando ao caminho circular e percebeu que nada voltaria.
A estação apagou-se por que era hora da Ave Maria e todos deveriam ir à igreja ouvir o padre falar que amor é pecado, o bom mesmo é sofrer a brochura dos dias. Só ela nos levará ao paraíso infernal dos anjos sem sexo ou nexo.
Será que passaria outro trem que não tivesse estrada curva e fosse para frente como se no horizonte pudesse encontrar um arco-íris?
Ajeitou o chapéu meio sem graça e sem certeza alguma. Sentou-se no banco esperando um maquinista que estivesse mesmo cansado e gostasse de viver numa estaçãozinha de fim de mundo onde tudo pode acontecer.
Quem sabe haveria uma estação chamada todo o sempre. Antiga o bastante para não viver a vida pós-moderna e sem graça que a gente só toca por que espeta um medo danado de as coisas sonhadas se realizarem impedindo os prédios de crescerem até rasgar o céu dos sonhos e das ilusões que se julgam perdidos, mas nunca estão.
Quando puxou a alavanca do desvio ao avistar o trem chegando, conseguiu ver nos olhos do maquinista uma chama esquisita de estou de saco cheio e o lenço vermelho do pescoço nem vacilou quando foi jogado em cima das engrenagens.
Resolveu não se apresentar e nem perguntar nome. Jogou longe o chapéu e ficou com a flor que colocou atrás da orelha. O hotelzinho abriu as portas que ficaram boquiabertas já que o casal não entrou e saiu a caminhar pelo campo enquanto os passageiros pediam socorro.
Só o capim alto soube o que aconteceu e foi para todo o sempre que quem acredita pode ainda viver contos de fadas nem um pouco modernos ou pós.

Vana Comissoli

CAFÉ COM CHANTILLY



Jorge sentou praça na cavalaria
E eu estou feliz porque
eu também sou da sua companhia

Em dez minutos estaria encostada no balcão da lancheria ao lado do escritório tomando café com chantilly. É inacreditável que vendendo máquina de café todos os dias e tendo á volta um leve cheiro de grão torrando ainda tivesse ânimo para se render ao hábito.
Tássia era assim mesmo, meio programada. Provavelmente acabara se tornando mais um botão no teclado do computador, seu fiel escudeiro. Bonitinha e simpática, o sorriso às vezes espontâneo, outras nem tanto, estava sempre nos lábios, ela mesmo ria-se disso sabendo quanto treinara a expressão na frente do espelho.
Enfim... C’est La vie. E se levantava para o café que a retiraria do ascético escritório super “clean” onde os móveis anonimamente em branco e preto e de vez em quando, bem de vez em quando, por baixo dos tapetes ouvia-se um proibidíssimo som de atenção do MSN de algum transgressor. Transgredir um pouco é a grande aventura e, como todos sabem, não há quem não o faça, ainda mais quando encurralados em prisão de janelas abertas.
A lancheria... O de sempre. Ois e como vais, cortando o espaço absolutamente sem querer saber coisa alguma. Eventualmente um mais verdadeiro surpreendia a todos e as cabeças se viravam na esperança que fosse para si.
O colega da outra sessão espalhava-se demais no balcão. O conhecia de vista, nem o nome sabia. Um João da vida qualquer que agora a aborreceria. Estava com uma daquelas dores de cabeça semanais e já sabia que não era enxaqueca, apenas enche a cueca com a saturação de trabalho e precisando de umas boas férias. Tinha vendido as últimas por falta crassa de dinheiro.
Olhou em torno e reafirmou que a única banqueta disponível era ao lado daquele monte de papéis de óculos. Tentou se espremer para pelo menos caber a xícara. O sujeito nem se mexeu, continuou de olho grudado no lap top como se estivesse em sua casa, só faltava mesmo era por os pés em cima da mesa.
Dor de cabeça é uma situação que compra briga quando não passa há três dias. Tudo incomoda mais do que o normal. Falou baixinho um, por favor, entre dentes. O cara não deu sinais de estar vivo.
Resolveu não se incomodar e pegou a xícara por cima da papelada. A mão tremia de dor e de raiva. Uma facilitada e entornou café num banho marrom açucarado de chantilly. O colega deu um salto, ficando em pé ao lado da banqueta e Tássia esperando o tamanho do esporro que levaria. Seu Milton servia o café em tamanho duplo sem que ela precisasse pedir e então o estrago foi tamanho dobrado. Alguns respingos no lap top. Céus valei-me!
Antes de sequer me olhar, vistoriou seus papéis, limpou com a barra da manga os respingos que borraram a tinta e ainda olhou em torno procurando algum que tivesse voado.
Eu, Tássia, taça cheia de fel ali, parada, esperando e botão de computador, louca para apertar delete. Tudo acontecendo em maiúscula e o tempo andando no ritmo de quem olha o relógio quando ele não mexe os ponteiros.
Seu Milton buscando pano de limpeza.
A lancheria toda de xícara na mão parada observando. Algumas caras de riso contido e outras penalizadas. Tássia que era eu e não gostava nem um pouco de ser o centro das atenções justo no pior momento e nunca tinha sido nos bons, esperando. Não havia nada mais a fazer. Até havia. Poderia ajudar, recolher, ir me desculpando a cada gesto. Paralisada. Que saco! Estava inerte e insuficiente com uma xícara escorrida na mão. Para sair do espasmo olhei o chantilly escorrendo em meus dedos.
Chantilly é bom. Por incrível imposição de fuga pensei nisso e lambi como se criança fosse ainda, descobrindo que era. Seu Milton, com o pano no ar me olhando como quem não está acreditando.
Fiz uma volta sobre mim mesma, nem acredito, mas em passo de dança. Acho que rumba e pedi mais chantilly.
O coitado do homem pegou a bisnaga, caríssima, diga-se de passagem, e encheu minha mão do creme leve e açucarado. Daquele jeito de sorvete italiano que de italiano não tem nada e custa apenas um real. Sei bem por que compro escondida todos os dias antes de chegar ao trabalho e jogo fora a pazinha do bom comportamento e vou lambendo com a criança que sou.
Foi só então que o sujeito sujeitado à minha esculhambação levantou os olhos e vi que eram azuis apesar do cabelo negro, negro. Vi também que a boca era rasgada, mas não faltavam lábios por que não gosto daquelas bocas de traço que não dão espaço para beijar. Não sei como me passou esse tesão de beijo numa hora dessas.
Logo em seguida para espanto de todos e nem um pouco espanto meu, ele atirou no chão os papéis e ainda deu um tapa no lap top que a Dell e até a Apple sofreriam tal qual bofetão na cara e eu vi, frente a frente os olhos azuis rindo e levando para a boca o riso.
Esqueci que era botão de computador e caí na gargalhada enquanto ele esticava a mão por que tinha me curvado no ato e talvez pensasse que estivesse bêbada e me segurava na queda.
Meu nome é Jorge e o teu?
Tássia, meu nome é Tássia taça cheia de amor para dar.
Saímos de mãos dadas e eu achando que Jorge é um nome chato e antigo, mas afinal também poderia ser o da Capadócia. Então está tudo bem e encontrei as armas de Jorge que sempre carreguei.

Vana Comissoli

quinta-feira, 29 de abril de 2010

SE ACASO VOCÊ VOLTASSE...


Quando estávamos saindo de casa, mal saindo, eu te disse que tua mulher quereria transar. Respondeste-me que tudo bem se ela não inventasse variações sobre o tema.
Como me bateu mal!
Tive a certeza que te venderias para ela, existisse eu ou não. Na volta me contaste que ela quis mesmo e de como não funcionasses.
Como me bateu mal!
Se tivesses tido ereção tu a terias satisfeito, existisse eu ou não. Eu existo?
Como foi maluco pensares tantas coisas de mim baseado em outras que aconteceram com a presença tão viva desse fantasma entre nós. Eu sou eu ou sou um reflexo do que não tiveste? Um circunflexo do que ela não te dá? Dona Flor e seus dois maridos é uma história fora de minhas cogitações e não quero um Vadinho vadio me correndo da vida. Iludida.
Duvidasses que eu não estivesse te sacaneando embora não fosse na minha cama que um fantasma dormisse com pernas, braços, cheiro e todos os componentes de mulher. Sem adereços, no escuro vale tudo, não tem endereço. A descarga seminal é feita e o sono vem.
Não paraste para pensar, tu não pensas, alguma coisa devia estar muito errada.
Eu falando esquisito, ou distante, pode ser porque vivas com outra mulher com quem quase, quase, tivesses relações sexuais e tens, diariamente, relações emocionais fortes. Talvez tenhas as duas coisas e não me digas. Não faz diferença alguma já que a traição emocional é ainda mais poderosa. Talvez tomes um porre com ela e então tudo funcione a contento e ainda me declares teu amor confessando que pensaste em mim no ato. Que merda me sentirei.
Tudo fica borrado e penso que ainda me manterás embaixo do tapete, escondida, por causa desse ou daquele que não estão nem aí. Os coitados dos filhos convivendo com pais tão loucos. Os filhos são sempre uma desculpa e tanto para a inércia. Inerte que és.
Os direitos de sentir te pertencem.
Eu tenho entendimento. Sou uma pessoa racional e inteligente, mas parece que as coisas não entram nos trilhos.
Sou emoção e sentimento também, embora estes te convenham apenas na cama. Fora dela se tornam impertinência e divagação. Afinal sou a melhor coisa que aconteceu em tua vida! Como não me sinto satisfeita com esse fenômeno? Como não me basta?
Sentia-me a dona da cocada preta ao ouvir isso até perceber que era pura enrolação para continuares vivendo tal qual um rei no jardim que era meu e não teu. Tu, intruso. Vastidão apequenada pela minha falta de lucidez, falta da racionalidade que tanto admiras em mim. Luz difusa no fim do túnel que não existe. Existe o túnel que se estreita e me aperta levando-me para longe de ti. Sou a máquina do trem, és apenas um vagão substituível. Esse túnel não tem fim?
Sinto-me ameaçada pela desconfiança e pela tua possível escolha por esta mulher que consideras uma louca inviável. Lembras quando nem os passos dela suportavas ouvir? Ou das laranjas roladas no meio fio na volta do supermercado numa bebedeira de Deus me acuda? Que beleza de mulher tens!
Sinto-me mal por que ainda ontem passei a tarde falando em ti para minha psicoloca, ou psicóloga para os que acreditam em padrões estáveis. Ela dizendo que eu encontrei quem me aceita como sou. Ouve-me. E a maluca sou eu!
Escutas-me por te convir. Não podes captar tudo que nego ou aceito para estar contigo. Podes ouvir ou selecionar o ouvido? Quero para mim um ouvido destes. Tudo é como entra por ele e não o realmente dito. Se eu falo é apenas som por que minhas mãos ainda enlaçam as tuas e eu tremo idiotamente por ti. Quero ainda que me digas que sou a mais importante de todas, mesmo sabendo que não sou. É, tem razão a psicoloca, a doida sou eu. E como! Como o pão que o diabo amassou por minha própria escolha. Reclamar do quê? Consinto. Eu sinto.
Agora, tão besta ainda, acho que possas ter dois segundos e me mandar por email um beijo de fim de semana. Nem virtual virá. A fila à minha frente é grande e estás apaziguado de tua angústia e talvez com isso fiques mais tolerante e acaricies os cabelos do fantasma como acariciaste os meus. Talvez fales as mesmas coisas vãs que ouvi em êxtase fazendo de conta que acreditava. Queria acreditar. Ainda quero?
Não virá por que tens um preço alto a pagar e tens que levar a cachorra para mixar, isso é trabalho demais para a coitadinha. Amanhã tens que levantar cedo e comprar pão para os meninos. É compreensível, tens que mostrar serviço para comer e a bebedeira do fantasma não permitirá que se levante antes do sol estar a pino. E o sarro da maconha dá uma leseira!
Tudo aconteceu por acaso, nada estava programado. Mentira! Busquei-te com unhas e dentes para sanear minha solidão e meu desejo de homem que não morre nunca. Amaldiçoada sou pela famigerada feminilidade sexual pulsante e livre para sentir essa coisa chamada desejo que nos leva a querer realizar atos por puro prazer. Essa droga que me aprisiona como pássaro na gaiola. Logo eu que quero respirar a vastidão.
Imbecil! És mesmo um imbecil. Eu te traí e com que satisfação! Na traição me encontrei. Nem só as mulheres são objetos sexuais, os homens também o são. Enrosquei-me em outros homens e dei o que era meu e não teu: meu desejo, meu prazer. Minha entrega. Só minha e que não pertence a mais ninguém. Ponho aonde eu quiser.
Coloquei tudo isso em ti, esquecida que não se dá pérolas aos porcos. Ensinamento quase tão velho quanto o mundo e tão mal aprendido. Apreendido.
Traio todos os homens que me traem. Que desserviço! Traio a mim mesma e sigo em busca daquilo que meu desejo, meu anseio e minha entrega almejam: não trair por não ser traída. Anseio pelo vazio.
Sinto-me enojada de tudo. De mim, de ti e... De todos que passarem por mim ou através de mim?
Pelo nojo, pelo fastio, dei-te um bom e eloquente ponta- pé na bunda. Aquele mesmo do qual tinhas tanto medo. Fiz. Não sem antes ter expurgado todos os fantasmas e pisei em ti como se pisa num verme do qual se quer livrar-se. Senti satisfação. Joguei em tua cara tudo o que engoli. Foi uma beleza. Tinha asco em todo lado. Uma grudenta forma de expressão bárbara.
Depois chorei, isso não viste, jamais te daria esse trunfo.
Ainda lembro as palavras de amor, infelizmente verdadeiras, com que me engoliste. Teu beijo... Tuas pernas pesando sobre as minhas. O riso fácil, a lágrima de despedida jorrando do olho. Teu desejo passeando pelo meu corpo numa sem-vergonhice encantada. Nossas safadezas indulgentes brincando de estamos sós. Nós dois. Tudo é possível.
As loucuras todas que fizemos com esmero e total alegria. Nada de teatro, de bonitinho. Putaria de primeira grandeza no aconchego de teu braço, de tua soltura a me trazer por estes caminhos nunca trilhados, onde esconder e balbuciar não faz parte do processo. Tua entrega. Descobri isso: homem também se entrega. Só nós dois.
Nós dois e o bater da chuva lá fora que nos obrigava a ficar na cama e no rugido do mar próximo. Nós rugíamos. Instaste-me a gritar. Que sacrifício! Gritar não fazia parte do meu brinquedo, mas teu prazer era meu prazer. Brinquedo de crianças vadias. Só nós dois.
Entregar-me. Quando será possível novamente? Deste-me demais e agora vago. Procuro entre os farelos que sobraram a tua sombra. Erro meu. Desfiz-me de tua ambigüidade. Feriu-me. Procuro a inteireza de encontrar em outro o reflexo de mim mesma.
Procuro o que não existe?
Procuro na sanidade de amor que não te entreguei.
O resto do não vivido vaga. Vaga longínqua que se eleva no horizonte e não se desmancha no regaço da areia.
Meu coração bate. Está vivo. Busco não viver fantasmas. Esconjuro-te para que me habite aquilo que ainda não tive. A temeridade da entrega total, aonde o Eu se resguarda sem medo de jamais ser visto, porém entrevisto nos espasmos que criamos como elos indissolúveis do que ainda não vivemos.
Espero...
Por quem?
O horizonte torna-se amanhecer e vejo a silhueta do dia que se aproxima coalhada de medo. Não sei se trará chuva ou tempestade. Se trará o sol suave e verdadeiro da meia estação.
Se numa volta do caminho eu te encontrar o fantasma serás tu. Nem te enxergarei. Não pertences ao mundo dos vivos.
Vago...

NÃO CASO, ACASO


Este sim.
Este não.
Este tira o pão da mesa,
onde está meu coração?

Tamara tomara que caia aqui na minha mão, abriu as janelas e entrou bruma. Pesada, ousada, instalada na sala de estar. Lá fora o sol olhava torto se esbanjando em todas as janelas, menos na dela.
A maldita organização fez com que buscasse a vassoura atrás da porta depois de escovar os dentes sessenta e nove vezes. Gostava de dançar com a vassoura palhaça das perdidas ilusões. Mas hoje...
A raiva abriu as comportas trancadas e esquentou.
Quando a raiva esquenta é bom. Deu um ponta-pé no raio do aspirador e jogou o espana-pó pela janela. Com a ponta da faca sempre afiada furou o balde. Resolveu encher o saco da vizinha de baixo regando as plantas do beiral até que a água se transformasse em cascata borbulhante da indignação dos sentimentos. Não atendeu o interfone da reclamação. Mandaria a fulana à puta que o pariu.
Tamara estava mais para tomara que caia na cabeça de alguém. Nem tâmara, nem tô na marra. Estava era puta da cara mesmo.
Na mesinha de cabeceira os incensos da paixão não tinham sido acesos e a camisola nova e provocante se escondia envergonhada pela virgindade flagrante. Os desgraçados lençóis ainda recendiam aos aromatizadores sensuais com que os encharcara.
Aromatiza a dor e faz de conta que fantasia não se usa apenas no carnaval. Quem sabe dura uma vida inteira, ou um pouco que seja para depois se despir de tudo e ver que é real e o outro dorme ali do lado como anjo inflamado, explodindo a gente que é. Seria como sonho que não é sonho e a gente se belisca por que assim é bom demais apesar da reclamação que sempre vem..
Seria uma recepção e tanto. Não dera certo, o acaso não gosta de preparo, prefere ineditismo e surpresa. Tamara era do tipo detalhes são vitais e constroem os acasos. Boba. Por acaso, acaso tem detalhe? Tem nada! Cai de repente na cabeça dos incautos. Bolo de chantilly na cara melecando a perfeição.
Tinha programado sem se esquecer de nada. A casa, não por acaso, parecia um palácio rebrilhando, e os canapés agora oxidavam inflexíveis dentro dos pratos de bordas douradas sobre a toalha de renda portuguesa. E tinha que ser portuguesa essa infeliz? Achincalhação. Deveria ter sido de chita rude, com flores imensas e horríveis. Bem cafona mesmo. Não deveria ter arrumado o cabelo e muito menos colocado perfume na virilha. Quase arrancara a pele esfregando a aspereza para que a seda escondida aparecesse.
Era uma raiva poderosa, ainda bem que não tinha nem gato, nem cachorro, com certeza os pobrezinhos estariam grudados na parede como um quadro desenquadrado. Por sorte esquecia do costureiro cheio de agulhas pontudas e ferinas senão as colocaria sob as unhas para que a tortura se materializasse. Permitiria chorar. Chorar era uma coisa tão fora de moda! Fazia tempo que esquecera este alívio. Forte, uma mulher que se garante. Tamara tomara que morra estava de saco cheio deste encargo, queria mesmo era derreter-se. Sorvete dentro da boca de alguém.
Sair desprevenida, caminhando ao Deus dará, nem pensar!
De repente poderia dar um encontrão no acaso vestido de homem cheiroso e isso seria um estrago danado. Aquele que mais queria. Se, ao dobrar a esquina tropeçasse e o tal vestido de príncipe, apeando do cavalo branco viesse resgatá-la? Ai, santos! Que medo! Poderia se apaixonar, coisa que mais desejava no mundo e ainda não tirara da cartola.
E se o príncipe caísse do cavalo batendo a cabeça nos paralelepípedos se transformando em sapo? Controla que controla e escolhe sempre errado que certo está para não correr o risco de se apaixonar. Coisa mais sem pé nem cabeça, com a cabeça no meio das pernas, lugar quente e inadequado que grita quando deita de pijama fechado até o pescoço para que as mãos não encontrem os caminhos.
O coaxar do passado saiu do brejo enchendo seus ouvidos do cheiro de lama e frutas apodrecendo sem serem comidas. Sapos é coisa nojenta, escorregadios e molhados. Odiava homens que suavam sem razão alguma, imaginava as mãos escorregando nas costas e os corpos sem poderem se encaixar por que deslizavam um sobre o outro. Nunca juntos, separados pelas glândulas sudoríferas exageradas. Não, suor anômalo, nem pensar.
Tamara tomara que sues sobre mim, não sabia o quanto o acaso sua e geme, às vezes até parece gente, sem perfeição alguma e fazendo umas bobagens monumentais.
Tamara maluca total pegou as seis calcinhas novas e absolutamente minúsculas compradas para que o acaso não a pegasse de calcinhas sem rendas e picou. A tesoura nem precisava de fio. Afiada estava pela decepção e o espera que espera, mas não vem. Porcaria de vida no silêncio da música que toca sem cessar.
Ai, que tivesse um macho para lanhar a cara e sentir o descanso de chorar num coração encostado no seu. Desmoronar e esquecer que a programação se rompera e os ditames do que for será são os imperadores de qualquer vida banal ou exótica, especial ou simples como todo dia.
O todo dia tem relógio de pêndulo e bate as horas pontualmente para levantar, agir, corresponder ao esperado, mesmo querendo se tonar absolutamente inesperado.
Deixa a vida me levar e a bandida não leva para lugar nenhum. Perder o controle. Jogar-se pela janela e planar como pandorga que o vento leva para o lado que quer. Sentir o vento transformando as águas paradas em onduladas ondas remanso. Remanso que não é manso, desmancha as cobertas, cheira a sexo e suor no quarto de portas abertas e os gritos fugindo para escândalo de meio mundo, antes fosse do mundo inteiro. Que meio mundo é coisa para bundões organizados e controladores que tomara que saiam da vida de Tamara.
No minuto seguinte, seculares segundos engatados, estava abrindo o armário e vestindo a escandalosa saia vermelha que sempre temera. Tamara, como temes! E a blusa verde berrante. Tamara, berra logo de uma vez por todas, pára de arrastar as tentativas de seres o que os outros não querem, que não queres ser e tanto não queres que acabaste sendo o contrário de tudo que queres. Liberdade cheia de elos e correntes que te seguram na diferença indiferente de ser diferente.
Tamara tomara que erres e deixes de ser perfeita e maravilhosa que errar dá reviravoltas e voltas revoltando a vida para transformar o errado em certo e o que não era em era ou sendo ainda.
Tamara desamarra as amarras, te veste de Jorge, com roupas e armas e vai ali para a esquina onde o acaso te espera vestido de azul Ogum para a vida terminar de se revoltar e faz de conta que tudo é verdade, que todos não apenas rastejam atrás de uma porção de riso, mas criam riso nas bocas cansadas e desamadas desarmadas agora, onde o beijo se esqueceu de repousar.
Se o riso se desmontar, não dá importância por que depois que o sol raiar isso não terá mais importância alguma, uma vez que lágrima também se troca e se enxuga. No frigir dos ovos podres que gelam sem se transformar em omelete, queres é um punhado de dor, de choro para que as coisas não se acabem neste fio sem fio de contas que perderam o brilho.
Pára de dizer, dou, não dou e ficar olhando as flores amarelas trocando o esfuziante colorido por chochas pétalas enferrujadas e abraça o príncipe vestido de lugar comum por que este dá para abraçar e o outro só consegue se esfumaçar.
Dá de uma vez e desce correndo as escadas, ou pega esta coisa que chamas de telefone e diz logo que ele venha por que as calcinhas estão cortadas e a camisola abusada pelo teu vômito de vazio.
Tamara tomara que estateles a cara na parede e quebres tudo aquilo que é cristal fumê escondendo o que realmente sentes.
Tamara, mostra a cara de uma vez que deste jeito ficarás tamarino, para sempre tô me rindo de hiena que sou.
Tamara mostra a cara que não sou anjo para ficar de banjo tocando no teu réquiem.
Vana Comissoli

CONFESSO QUE APRENDI...



Aprendi...
A ouvir os passos da noite
sentindo os pés no chão.
A jogar no fogo
os véus do pudor infecundo.

Aprendi contigo que podemos pensar
que não somos deste mundo.
Somos pássaros, astronautas,
filósofos e artistas,
mesmo quando a vida nos chama
de ilusionistas.

Aprendi que mão na mão,
é carinho.
Não tem idade, nem feição.

Do cume de altos montes,
teus braços ao céu erguidos,
joguei à fome dos inválidos,
minha vergonha já mastigada.
De todo o suco, amputada.

Joguei aos porcos,
o chorume dos repolhos podres,
com que me alimentei,
depois de me teres ensinado
a cor do sorvete derretido
e dentro da tua boca,
sorvido.

Aprendi que a noite
também é dia.
O dia, na noite se esconde,
quando o cansaço sacia
o desejo do meu corpo no teu.

Aprendi que rir alto,
não faz mal.
Traz inebriante alegria
nas brincadeiras de nós, crianças,
para sempre baldias.

Tu me trouxeste,
em grandes braçadas,
o despertar da vida latente
que em mim, só ardia.
Brasas que eram
a perderem-se no cinza graúdo
de meus dias.

Gosto de chocolate amolecido,
terra de sal e de azeite,
nas dobras de teu aconchego
me mostraste.
Ostras, calamares,
cogumelos bravios,
ondas dos sete mares.
No meu ventre derrubaste.

Em vestido de festa,
transformaste
a nudez de meu seio.
A sisudez, o aviso, o não faça,
liquefizeram-se na tua risada
escarlate.
Da cor de teu coração
que, entre beijos,
me doaste.

Nos porões, os ratos ainda gemem,
soam seus ruídos mesquinhos.
Não são ratos, meu bem,
mas passarinhos.
Recolheste assim, meu medo em abraços.

Refeita e nua,
reconheço
a vastidão do que me deste.
Doce, tropical, ardente,
a visão onipresente
da vida em mim pulsando.

Te confesso, aprendi,
a amar tudo aquilo que vivi.
O bem e o mal,
a hora boa e a hora torta,
o conchavo e o concílio.
Te confesso,
em ti, eu vivi.

Se partires, pela porta entreaberta,
hei de chorar, estou certa,
mas não lamentarei
nem sequer a saudade que amargarei
porque o vivido
jamais será esquecido.

Meu peito, amornado para sempre,
te carregará, preciosa dádiva,
inesquecível presença,
das ousadias que ousei.
e do amor que roubei

Vana Comissoli

O TOQUE VIRTUAL DIANTE DO AMOR E DA VIDA


Vivemos a Era Virtual. A Contemporânea começou seu fim com a construção do primeiro computador.
A partir daí a automatização de tudo foi crescendo em ondas cibernéticas co-lossais.
Não precisamos mais fazer ou comprar pão (alimento histórico, bíblico, simbó-lico) apenas programamos uma máquina e na hora que desejarmos ela expurgará pão quente e cheiroso para o café da manhã, tarde (um tanto obsoleto) ou da madrugada. Esta, cada dia mais extensa, nós cada vez mais insones, estressados, indormidos.
O pão vivo do espírito nos é servido em CDs em todas as linguagens possíveis de Deus. Algumas inventadas. Afinal não carece de assinatura do Divino.
Vinte e quatro horas por dia as rádios e as televisões rezam, oram ou profanam. Não é o bastante em termos de espiritualidade? Um show de primeira!
A presença de guias, mestres, orientadores tornou-se arcaica, basta ter carisma, um rosto belo, saber cantar, gritar e se balançar ao som de músicas duvidosamente angelicais.
Dormimos ao embalo metálico da TV que se desligará já tendo interferido em nossos sonhos não mais mensagens do inconsciente, mas pasteurizados e controladores de nossas escolhas e necessidades.
Que dizer então sobre os relacionamentos?
A solidão atinge cada vez mais gente, os casamentos desgastados ou impostos, se arrastam e aumentam inexoravelmente na mesma proporção de seu vazio.
O sentimento humano resiste entrincheirado em sua cruel antiguidade e obsole-tismo sob os olhos da geração hay teck. Bate em nossa cara e em nossos corações im-pondo exigências esdrúxulas de aproximação e contato. De eco do outro em nós e de nós no outro.
Estamos na Era Cibernética, conhecemos pessoas ausentes, anônimas e inverídicas nas baladas, nos chats, nos encontros virtuais.
Vez por outra ousamos ouvir suas vozes através do telefone, tendo o cuidado de não revelar o nosso. Se usarmos o celular, outro aparelho que passou a fazer parte de nosso organismo, programamos para aparecer número desconhecido. Ou o Bina nos avisará do inconveniente que clama acreditando ainda em humanidade e solenemente, cheios de razão, não atenderemos.
Alguns, mais audaciosos ou mais ultrapassados se expõem a um contato visual, um sexo de uma hora ou de uma tarde. Sexo virtualmente perfeito, sem face e sem alma.
Robotizamos o parceiro e usufruímos do corpo pretensamente plastificado por nossa imaginação. Depois, falsamente preenchidos, damos as costas. O sêmen jorrado se descarrega como algo espúrio e damos descarga na privada. Liquidada a questão.
Se tivermos o azar de encontrar algo real e tangível, assemelhado à gente, cor-remos a excluir e bloquear. Simples e rápido. Problema resolvido.
A maior parte das vezes nem ao menos nosso nome deixamos impresso na lem-brança, um nick nos afasta de forma protetora e escondida. O distanciamento da perso-na, da intimidade que intimida não fica comprometido.
Quando o corpo clamar novamente ou o vazio bater à porta, recorremos ao pro-cesso e fingimos que ele funciona azeitado.
O que restou?
Isso deixou de ser importante e vital. Coisa do passado romântico, afastar-se dos atritos que nos dão polimento é o objetivo. Atrito incomoda e não temos tempo de ser incomodados.
Os conflitos são empurrados para longe pelo teclado de um computador e nossa alma jorrará em jatos estrobofóbicos nas ondas da Internet.
Sentimentos à vista? Delete.
Ser humano ao alcance? Delete.
Deus vivo falando através de sinais e símbolos? Delete. Idéias, criação, prazer genuíno e vivo? Delete.
Prefira os ícones de sua área de trabalho.
Atual e moderno. Os demais são pertencentes às eras anteriores e ultrapassadas. A poesia agora é concreta.
Sintetize sua alma no twiter.
Beatifique sua imagem no orkut.
Atualize-se: torne-se um morto vivo, representante fiel da nova religião Rapa Nui Virtual & Cia.
Parabéns, evoluímos! Logo, logo as cavernas cibernéticas se abrirão plenamente nos trazendo êxtase de silicone.


Vana Comissoli

BRINQUEDO DE DEUS


Deus estava ali chateado, sem nada para fazer. Nem chuva, nem sol. Ele ainda não tinha brincado de massinha e feito estas coisas que é o mundo. O universo.
Por isso a primeira coisa criada foi a massinha de modelar. É um material plástico com o qual se pode fazer o que quiser.
Deus tinha o tempo do Infinito, fez animais em todas as formas de sua incomensurável imaginação. Achou que o brinquedo poderia ficar melhor e misturou os animais, saíram meio esquisitos e ele se divertiu muito. Ornitorrincos, cangurus, pescoçudas girafas e todos os outros. Mergulhou alguns no mar e outros jogou no céu. Alguns ele esqueceu na terra por que aparecia outra idéia mais legal e já queria vê-la materializada.
Fez um boneco, não era de barro, isso é informação que chegou distorcida. Era de massinha que não quebra fácil e dá para movimentar. Como estava cansado e já tinha modelado o dia e a noite, suspirou. Um sopro de seu suspiro bateu no boneco e o milagre aconteceu: virou homem.
Esta criação recebeu junto a vontade de bisbilhotar, afinal era a essência de Deus que passava bisbilhotando possibilidades. Como a criação nunca é igual ao criador, algumas vezes sai bem piorzinha. O boneco que levou o nome de homem começou a querer saber coisas e mais coisas. Deus se encheu e mandou o cara dormir. Homem sentiu frio, afinal as roupas ainda não tinham sido criadas.
Deus é um cara legal, deixou umas besteiras para o homem inventar.
Porém, nessa situação, Deus tinha que dar um jeito. Pegou outra porção de massa e não a arrancou do homem, não, veja-se como no final a essência ficou diferente. Criou outro boneco, mas o artista era cioso de sua capacidade de diversificação e fez algumas partes distintas. Pensou também que no frio seria bom se os bonecos se encaixassem, por isso caprichou na boneca, afinal o homem já estava pronto. O encaixe teria que ser nela.
Chamou a boneca de mulher.
Homem e mulher levantavam quando o sol nascia, ficavam vasculhando o que Deus chamou de paraíso. Como não tinham mais nada o que fazer e eram seguidores de Deus, se puseram a criar.
Deus até que achou legal. Ficou satisfeito com sua obra. Foram os seres que mais lhe chamaram a atenção. Como resolviam facilmente os entraves que apareciam, resolveu criar alguns probleminhas porque modelar já tinha esgotado e ele queria um brinquedo mais movimentando.
Fez muitos, muitos bonecos, aprimorou-os de forma que eles mesmos pudessem criar outros semelhantes a si próprios. Como já tinha dia e noite, podia largar umas bolotas no espaço que sobrava e criou mundos para que os homens e as mulheres tivessem um lugar para viver que ficasse um pouco longe Dele. Sabemos que Ele cometera pequenos deslizes, foi distraído na criação. Homens roncam.
Outros acréscimos também foram feitos. Deus gostava de “pegadinhas”, inventou a tal da psique, emoções e sentimentos, ou seja, embaralhou o meio de campo e marcar gol ficou bem mais complicado. Mas jogo bom é aquele em que se tem que torcer, senão fica monótono e gritar gooooolll na hora do acerto é o acerto.
Quando os homens criaram tudo que era absolutamente necessário para sua sobrevivência, que foi outra mania que Deus colocou dentro deles, começaram a questionar. Era o mais divertido para Deus por que as repostas eram as mais estapafúrdias possíveis e nunca resolviam tudo integralmente.
Agora, pelo menos, nós sabemos que foi assim que tudo começou: um brinquedo de Deus entediado com o Nada que não existia, uma vez que o Nada é o vazio de todas as coisa.
Deus é mesmo um cara com alta tendência à comédia, mas dizem os entendidos que ele nunca mais se entediou.



Vana Comissoli

ESTRANHAMENTO


A voz do piloto avisou a aterrissagem.
Espiava minha cidade natal há algum tempo. Reconhecia as voltas do rio, as ilhotas, a chaminé que virou monumento. Até meu bairro de infância podia adivinhar no meio de tudo.
Não conseguia ver-me caminhando nas ruas conhecidas, revirando as gavetas que deixei. Os brinquedos que quebrei. As cicatrizes que trago.
Provavelmente meu retrato ainda está na prateleira junto com todos os outros. E meu cachorro sorrirá latindo para mim, ou latirá sorrindo. Eta, Roberto, essa foi infame! Até meu cd do Roberto Carlos estaria a um esticar de braço para entrar no som. Eu nem gostava mais do rei, dei-me conta. Meus ouvidos estavam cheios de outros sons e ritmos.
Os amigos e a família estariam festivos no aeroporto e haveria abraços, beijos e batidinhas nas costas. Eu estaria longe dali e teria aquele sorriso parado com a saudade já beliscando.
Porto Alegre é gaúcha, hospitaleira, me lembro bem do quanto aprendi sobre isso na escola decantando as maravilhas de ser do sul e o orgulho que inflava meu peito até ir embora daqui.
Fui.
Escorreguei suavemente a passagem para outras terras e sotaques que encantaram meus sentidos. Lá encontrei um cara que nem sabia que era eu. Um cara legal que ria e não tinha medo de nada, nem de ser assaltado na esquina. Lá não tem assalto e as ruas são largas para se caminhar nas madrugadas amigas.
Demoro o mais que pude para sair da sala de bagagem, ficar é não ter chegado. As malas rodam conhecidas várias vezes e o pessoal lá fora fazendo zoeira, abanando. Todos me querem e eu quero apenas vê-los rapidamente e pegar o primeiro avião de volta.
Depois de toda festa de recepção que não foi nem um pouco diferente de qualquer outra, entro no meu apartamento desejando que ninguém queira ver os souvenires. As ocupações que os chamassem e saíssem correndo por que precisava chorar o tempo acabado.
Não tinha nem a desculpa de ter deixado amada para trás, embora tenha deixado amores mil, nenhum da cor de anil do meu Brasil. Meu Brasil... Quero mais é te ver pelas costas, cheio de falta de oportunidade, de reflexos pregressos de vícios burlescos e dantescos. A vida lá fora cheia de charme e educação abrindo as portas e não as bundas expostas das boazudas brasileiras.
Lá ninguém joga papel no chão e latinhas não são atiradas pelas janelas. Aqui, se atropela até o cachorro do vizinho que não buzinou a passagem. Pode acontecer de escorregar num coco na calçada, mendigo não tem sanitário e até acha que isso é palavrão.
Moro aqui e ficarei até que as asas terminem de crescer nas faculdades que me darão o passaporte para virar de outro mundo. Deus é brasileiro. Sou ateu, ainda bem.
Trago comigo uma nova história e isso significa revolução.
Procuro os amigos, louco para contar as descobertas, as vivências boas. Todo mundo está casado, não tem mais tempo para rir ou tomar um chope. Ouvem desatentos, agora são homens sé-rios, não podem jogar conversa fora. São bobagens de botequim e eles sentam-se às mesas de toalha branca e louça marinex.
Tento cumprimentar os vizinhos. Quando respondem é de cabeça baixa e eu nem entendo o boa tarde, ou boa noite. Talvez nem tente nada e pense que tento no intento de entender.
Não dá mais para bater na parede e convidar o companheiro para fazer um levantamento da despensa e jantarmos juntos. Ou ir numa tasca para ouvir, só de sarro, alguém ou nós mesmos can-tando música de dor de cotovelo com os cotovelos apoiados na mesa.
Os museus e lugares históricos sumiram. Os passeios e o atrapalho das várias línguas que nunca impediram a aproximação, sumiram. Tudo ao redor de mim sumiu e existem árvores de cachos maduros de saudade e gente caraminholando de lado histórias banais.
Não sou mais daqui, pensei numa tarde em que a TV estava de última e o Faustão interrompia as falas dos outros com as piadinhas mal colocadas e esculhambantes. Chorei. Um marmanjo chorando. Tinha graça essa! Chorei com vontade e não tinha graça nenhuma.
Aos domingos as pessoas visitam a família ou tomam chimarrão no parque. Estes tem árvores jovens de cem anos por que as antigas não conseguiram atravessar o oceano a nado e têm encantadores quinhentos anos copados.
As tardes de Lisboa me espiam pelo computador onde as risadas e o companheirismo estão guardados para eu acreditar que se pode viver diferente e o mundo não é pequeno. Onde a gente casa e não precisa ficar velho e chato por causa disso.
Estranho... Para onde foi a famosa cordialidade gaúcha? Se eu for num CTG talvez encontre, mas se estiver pilchado e falar português guasca senão podem me considerar um Et sem graça vestido de jeans e camiseta recém chegada de outro planeta.
Estranho tudo. Ou terei eu me tornado estranho. Um estranho no ninho. O filme fala bem da descabeçada humana, onde a loucura ronda sem espaço para ser feliz. Eu me sentia desta forma entre minha gente.
Namorar ficou difícil. As gurias se grudam na gente já nos enxergando de gravata prateada no altar ou dão até na esquina e passaram por todos os amigos que casaram com alguma delas que se tornaram matronas do dia para a noite. Algumas no corpo, outras no espírito.
Passei a considerar esta cidade que eu amava o ó do borogodó. Amamos as cidades, os luga-res pelas pessoas e não pela aparência, ou clima. Não somos geográficos, somos sentimento. E estou me sentindo um merda perdido neste labirinto de intenções sem intenção de coisa alguma além de marcar os dias que passam na folhinha do acabou mais um. Vou levando, empurrando com a barriga. Como ouço esta bobagem! Não quero empurrar nada, quero é viver cada dia existindo nos minutos e segundos de horas inteiras.
Talvez esteja vivendo a cidade que construí internamente e ela está cheia de ruas vazias e pessoas que vão e vem sem olhar para os lados por que é comprometedor. Corro o risco de ser atro-pelado ao atravessar a rua já que meus olhos estão cegos e vejo luzes inexistentes em arco Iris de cores multifacetadas com sons feitos de partículas de água refletindo o oceano que atravesso dentro de mim.
As cidades têm a alma das pessoas. As daqui são tão pequenas e vêem seu umbigo como o sol do Universo e as coisas enraízam como se árvores fôssemos e não pássaros que podem voar e voltar para o ninho com asas mais fortes e coragem tanta.
Vou-me embora,
Vou-me embora, prenda minha.
Tenho muito que fazer.
Tenho que ir para rodeio,
Prenda minha,
No rincão do Bem querer.

Vou-me embora.


Vana Comissoli

PÓS-MODERNO

Alguém tem que fazer alguma coisa quando as coisas todas empacam e ficam de olhar bovino contra o alguém que nada faz. Concluindo pensamento tão esdrúxulo Tarsila saiu de si mesma e foi à luta que essa história de destino é coisa de maluco acomodado na estação olhando o trem passar sem estacionar.
Nas janelas do trem pessoas olham para fora como se a paisagem fosse feita de papel maché e não de natureza verdadeira e pulsante. Algumas até acenam num gesto sem graça e contraído com a mão mole e cheia de receios.
É possível que os vagões tenham ar condicionado e a cerração aqui fora não convide para descer e comer um pastel de vento na birosca meio sebosa no meio do nada, de vidinha parada embora cheia de vidas encruzilhadas e escondidas embaixo do edredom solitário.
A aparente falta de força se desenrolou e puxou com gana o manejo do desvio. O trem não teve outro jeito a não ser trocar de trilhos num solavanco desengonçado e contrafeito. As passageiros foram jogados para a frente e freados num repelão que tirou do lugar suas colunas tortas colocando um torcicolo duro e atado no pescoço.
Afinal era feriado e não tinham mesmo necessidade alguma de chegar a lugar nenhum.
O maquinista pensou que era o único a fazer alguma coisa neste momento e por isso parar ou não parar podia ser decisão sua. Quem estivesse dormitando não perceberia a diferença uma vez que a fumaça do trem nada moderno continuava fumegando e dando a impressão que o movimento continuava.
Na verdade estava enjoado de andar em círculos. Aquela linha era circular e há anos, talvez todos de sua vida, passava pelos mesmos campos e as mesmas ilhas de folhagem escura que não tinham idade alguma. Os telhados das estações continuavam vermelhos como se pintados naquele dia e as crianças acenavam o mesmo adeus.
Desceu e convidou para um café a moça de chapéu com uma flor do lado, toda vestida de cor de rosa enquanto as rosas do rosto estavam murchas e descoloridas. Para sua surpresa ela aceitou e sorriu como se estivesse acostumada a sorrir e se via nos cantos da boca de batom borrado que fazia tempo que o riso tinha fugido para os intestinos.
Entabularam uma conversa que mentia ser costumeira e fizeram afagos com palavras e gestos. Ele até colocou a mão sobre a mão enluvada da moça que não retirou e abriu os dedos gelados enlaçando os dele numa propriedade inadequado, mas muito desejada.
Num segundo beijavam-se na boca e ele sentiu um calor desconcertante, aquele mesmo que esperava encontrar, porém acreditava que não encontraria nunca.
Encontro é coisa difícil de ser encarada, já que força à posições e decisões, às vezes decúbito, onde se deseja dar não dando coisa nenhuma pelo medo de ver a rosa do chapéu murchar e as bochechas se tornarem vivas e rosadas. Isso transformando a espera e os trilhos circulares num vai para frente que pode assustar. Nunca se sabe quando terá uma vaca pastando lerdamente no meio dos dormentes forçando uma parada para descansar da reclamação costumeira e conhecida.
Tarsila ajeitou o chapéu e empoou o rosto sem se incomodar de fazê-lo apoiada no balcão enquanto o pastel olhava oleoso para ela e o homem examinava cada curva feita pelo seu corpo no espaço entre a pele e o tecido do vestido.
Romualdo era seu nome, pois esse é mesmo nome de maquinista. Pensou que nunca se sabe aonde pode levar o encontro com uma mulher dessas, feita de espasmos e toques. Nuvens e rocha.
Tarsila percebeu no ar insólito da cena o cheirinho dele e comentou em voz alta para demonstrar que estava presente no momento. Esticou o olho para o trem esperando que tivesse sumido para não levá-lo embora tão logo terminassem os preliminares ou continuares. Nunca se sabe aonde pode levar o encontro com um homem desse feito de desejo e de esconderijos.
Era uma mulher que tira da bolsa rocamboles de doce de leite, aqueles que mais se gosta e serve a gente num carinho delicado com os olhos postos nos nossos e então dá uma vontade grande de comer a boca e sentir os seios enconchados no peito. Romualdo sabia que ela concordaria com tudo sentindo no espaço entre cheiro e corpo toda a espera que vivera esperando um trem que parasse na estação e vendo apenas os fundos do último vagão.
Olhou para o outro lado da rua e percebeu o hotelzinho bem ajeitado, até com cara de casa de boneca e a convidou para descansarem fingindo dobra de conversa quando sua vontade era bem avessa e quisesse mesmo era desfrutar a flor do chapéu e o cheiro de alfazema que saia debaixo das saias.
Tarsila, enjoada de ser comedida e consequente, aceitou o convite e nem precisou fazer beicinho fingindo temor ou pudor, afinal estava tudo ali em cima do balcão e dentro das mãos dele, embora Romualdo fosse um nome que enrola a língua e não gostasse de nomes com U no meio. Nestes tempos modernos podia tudo e não se fez de rogada. Tirou as saias e abriu a blusa se dando sem reservas.
O trem estava parado então era certo que este maquinista viria para maquinar todos os dias de sua vida. Olhava para ele e percebia quanta ânsia de encontro havia nas pestanas meio marcadas por lágrimas decepcionadas loucas para encontrar o afago de uma mulher de chapéu.
O chapéu não tirou. Era bonito fazer amor de chapéu e podia permitir que o aroma da flor continuasse agindo sobre o homem. Brincou com os dedos dentro de seu cérebro e coração para ter certeza que o veria todas as vezes que parasse na estação. Esperar tornar-se-ia uma coisa boa e quente e conheceria o trem pelo nariz e a fumaça do cigarro que fumava antes e depois. E era Romualdo mesmo sem ter ainda encontrado um apelido condizente que soasse mais a carinho e não a palavrão.
Lá no trem as pessoas acordaram de todo e foram indagar por que o trem estava estacionado nesta estaçãozinha mais sem graça perdida no meio do caminho e retardando a chegada na estação que não chega nunca. Era bem nessa que queriam estar.
Puseram-se aos gritos de pega ladrão pensando que algum meliante (que é palavra bonita e elitista por isso a usaram) tivesse roubado o maquinista para possíveis acontecimentos verdadeiros o que não estava incluído na passagem.
Romualdo levou um susto e deu-se conta que tinha descido do trem e isso não estava em seu contrato de trabalho. Podia ficar sem o salário do mês e tinha criança para criar precisando de cadernos e sapatos. Tinha também uma mulher que usava avental e não tinha chapéu nenhum. Flor cortada e colocada no vaso até fenecer e ser atirada no canteiro para virar adubo e trazer outras flores para serem cortadas e irem para o vaso rachado sem ter tempo de fazer semente.
Colocou as roupas no ligeiro procurando o relógio que não sabia onde se escondera na pressa de tirar tudo que pudesse remetê-lo á realidade que não queria e era a única que tinha para viver. Sabia que sonho de fazer cócegas é coisa do céu de Ícaro e a verdade estava no céu de Galileu que afinal obedece a ordens sei lá de quem uma vez que esta mundo não tem ordem nenhuma.
Não se esqueceu de comer as coxinhas e tampouco de tomar café no bule dos lábios dela. Foi cortês, era um sujeito educado e jamais abusaria de uma mulher tão abusada sem agradecer depois.
Tarsila nem teve tempo de tirar o chapéu da cabeça e colocar as saias verde desmaiado para encobrir o vermelho vivo de entre as pernas ainda ferventes. Correu atrás dele para acenar um adeusinho e mandar beijos na ponta dos dedos, coisas que só a delicadeza faz quando sabe que não existe ponto final e logo vem outra viagem trazendo o Romualdo.
Enquanto os passageiros agitavam lenços vermelhos e vociferavam palavrões nenhum pouco delicados virou-se para trás e sorriu. O peito aquecido e a esperança desabrochando numa vontade louca de fazer de conta que voltaria.
Tarsila ficou olhando o trem retornando ao caminho circular e percebeu que nada voltaria.
A estação apagou-se por que era hora da Ave Maria e todos deveriam ir à igreja ouvir o padre falar que amor é pecado, o bom mesmo é sofrer a brochura dos dias. Só ela nos levará ao paraíso infernal dos anjos sem sexo ou nexo.
Será que passaria outro trem que não tivesse estrada curva e fosse para frente como se no horizonte pudesse encontrar um arco-íris?
Ajeitou o chapéu meio sem graça e sem certeza alguma. Sentou-se no banco esperando um maquinista que estivesse mesmo cansado e gostasse de viver numa estaçãozinha de fim de mundo onde tudo pode acontecer.
Quem sabe haveria uma estação chamada todo o sempre. Antiga o bastante para não viver a vida pós-moderna e sem graça que a gente só toca por que espeta um medo danado de as coisas sonhadas se realizarem impedindo os prédios de crescerem até rasgar o céu dos sonhos e das ilusões que se julgam perdidos, mas nunca estão.
Quando puxou a alavanca do desvio ao avistar o trem chegando, conseguiu ver nos olhos do maquinista uma chama esquisita de estou de saco cheio e o lenço vermelho do pescoço nem vacilou quando foi jogado em cima das engrenagens.
Resolveu não se apresentar e nem perguntar nome. Jogou longe o chapéu e ficou com a flor que colocou atrás da orelha. O hotelzinho abriu as portas que ficaram boquiabertas já que o casal não entrou e saiu a caminhar pelo campo enquanto os passageiros pediam socorro.
Só o capim alto soube o que aconteceu e foi para todo o sempre que quem acredita pode ainda viver contos de fadas nem um pouco modernos ou pós.

Vana Comissoli