quarta-feira, 26 de outubro de 2011

FILHOS DO PODER SUPERIOR

Aos parceiros da UDQ na lembrança
amigos, irmãos, camaradas
para sempre.

Patrick, André, Astréia e Míriam.
Conhecemo-nos aqui nessa casualidade imposta. Prisão disfarçada.
Somos adictos internados, cada um na sua, numa clínica para dependentes químicos.
Os dias se arrastam nos grupos terapêuticos, sessões com psiquiatras, seminários explicativos (prá lá de chatos), filmes patrolando nossa adicção.
Temos pela frente trinta dias iguais, convivendo numa panela de macarrão que cozinhou demais. Mole e emaranhado. Um barulho ensurdecedor dentro da cabeça. Noites fritando na cama até chegar o entorpecimento sonambúlico dos remédios forçando a desligarmo-nos do mundo.
Muitos momentos, horas ociosas. Fumamos loucamente. Não temos bebida, nem droga, nenhum embalo. Os cigarros como único escape, uma chaminé para os pensamentos esburacados.
Uma constante charada martelando sem resposta: Quem sou eu? Quem sou eu? Um cogumelo ou um elefante branco? Somos um pouco de tudo, até da interrogação. Tentando sair de um buraco negro e fundo que nós mesmos cavamos.
Cogumelos tentando se proteger com suas copas da chuva ácida, presos nas raízes que sobraram da gangrena de nossas desgraças.
Elefantes brancos no espelho dos olhos de quem nos observa.
Um monte de retalhos a serem costurados para, afinal, nos mostrarem o que somos e a que viemos.
Entramos esquivos, meio chapados ainda, meio bêbados. Estômago embrulhado, o medo nos olhos, a solidão na alma e a desconfiança como escudo. Alguns dão o último “teco”, a última fumada da pedra, a última cheirada, no banheiro da recepção, enquanto esperam a triagem. Só os alcoólicos não fazem isso: impossível esconder uma garrafa de vodka no rabo.
Logo estarão nus e se agachando para ver se não trazem nas entranhas algum suspiro de cocaína, crack ou maconha.
Arrancados de nossas referências, por vontade própria alguns, outros a fórceps. Pouco convencidos da lepra em que nossas vidas desembocaram.
Aos poucos, a exposição desnuda das terapias, nos mostra as afinidades dos desafins em tudo, menos com as drogas. Os pontos de toque e de choque em que esbarramos.
Encontramo-nos.
Patrick. Vinte e seis anos, cocainômano injetável. Lindo como Adônis, meio morto como Lázaro. Homo, bi e se pudesse, tri sexual. A sensibilidade jorrando pelos poros, pelas tatuagens, pelos piercings. Um espírito gritando, enquistado no desespero.
André. Ao passar pelas ruas, as pessoas se voltam: que cara de bom menino! Que translúcidos olhos azuis! Cabelos loiros, comportados. Suave e interrogador olhar. A inquietação enchendo sua boca de chocolate, balas e perguntas. Voraz, incerto, inseguro. A cocaína cheirada no escondido da madrugada, do filho e da mulher a quem se atracava com toda a força do coração torcido. Muitas internações, esta sua última esperança. Haverá a última? Ou será a última antes da próxima?
Astréia. Menina levada, quase criança. Estapeando o mundo com a raiva nos olhos turquesa, na aparência mais do que desleixada, nos palavrões que saúdam suas falas. Na homossexualidade escarrada na cara dos certinhos e estúpidos, no seu conceito. Um ET sem saber de que planeta caíra. Perdidaça, jurando que sabia tudo. Somelier de todas as drogas. Uma expert.
E eu. Mírian. Atravessada pelo álcool depois de ter sido atingida por um avião batendo nas torres gêmeas. Família, filhos, trabalho. Tédio aparentemente normal. Torcida igual pepino para se tornar o que jamais fora. Deixando-se domar por medo do mundo grande e ameaçador. De solidão já tinha prenhe a infância irreversível. Algumas fugas guerreiras para manter a identidade, mas que já prenunciavam a válvula de escape da vodka. Um barco desgovernado procurando bússola.
Quatro vidas, quatro desencontros, quatro carências absurdas.
Na encheção das terapias ou nas dores da cura, em meio às conversas sérias, mineradoras, a exaustão de lapidar-se.
Foi simples assim.
O fumódrofo mergulhado na fumaça dos incontáveis cigarros, os poros exalando nicotina, a boca feito cinzeiro.
Grupos reunidos no dominó, alguém sozinho num canto com olhos perdidos, um violão retinindo.
Nós quatro proprietários da mesa grande onde ninguém se atreve a chegar.
As palavras dos grupos de auto ajuda tilintando nos ouvidos:
“Acreditamos que um Poder Superior a nós mesmos pode devolver-nos o equilíbrio.” (Primeiro passo do A.A.)
“Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus na forma em que O concebemos.” (Terceiro passo do A.A.)
Poder Superior... Estrela longínqua no espaço sideral da adicção. Crença vazia de significados. Objeto de nossas orações desesperadas e jamais materializadas. Nada de milagre à vista. Só muita coragem e querer. Ponto de interrogação.
− Tive uma idéia espetacular! Não somos filhos do Poder Superior?
Eles me olharam.
− E daí? Grande merda. – retrucou Astréia.
− Ele existe. – Afirmou André convicto. Eu vi. No lustre de minha sala.
− No lustre... Ah, me poupe! Viajandão vê até Jesus Cristo descendo da cruz soltando fogos de artifício.
− Existe, mas não se importa. – vaticinou Patrick.
− Então vamos recriá-lo à nossa imagem e semelhança, conforme o concebemos. Não é isso que eles pregam?
A olhada de meus parceiros traz carradas de curiosidade. Alguma luz, eu acho.
− Vamos criar a Igreja dos Filhos do Poder Superior!
Uma lufada de ar baleiado. Fonte de inesperado desufoco. Brincadeira no meio do peso.
− Seremos os pastores.
− Isso dá grana, muita grana.
− Irmãos, ovelhas desgarradas, o Poder Superior abre seus braços sobre suas cabeças sofridas. Espera apenas a vossa aceitação. Materializem a entrega de suas almas, de suas vidas através da fé do dízimo. Doe e receba em dobro!
-- Em triplo! – Triplo é melhor. Pega bem.
Pastores precisam de nomes de impacto. Místicos. Força e fé.
− Patrick, serás Osiris, o deus egípcio julgador dos mortos, o que pesa os corações e portanto a validade da vida.
− André serás Thor, o deus nórdico. Representando a força da natureza, o trovão, fazendo justiça com seus raios, com o seu martelo.
− Astréia. Serás Perséfone, amada de Hades, deus das entranhas da terra e para lá a levou. Por pedido de sua mãe inconsolável volta para visitá-la e da alegria de Demeter, nasce a primavera. O renascimento. Renasceremos nas tuas mãos, pastora dos perdidos, dos abandonados.

Eu serei Kali. Kali tem um relacionamento ambíguo com o mundo. Por um lado destroe os espíritos malignos e estabelece a ordem. Entretanto também serve como representante das forças que ameaçam a ordem social e a estabilidade por sua embriaguez de sangue e subseqüente atividade frenética. A deusa da morte. Organizarei a mente dos desviados.

Já a mania tomava conta de nossos frágeis egos. O entusiasmo eleva as vozes.
Astréia brada:
--Roupas. Não podemos usar coisas comuns, banais. Nós somos os pastores, os fiéis devem nos temer e respeitar.
Era chegada na moda trash. Patrick transava jóias de prata, anéis, pulseiras.
− Branco, tem que ser branco. Pureza. A nossa pureza. – Baixa um pouco o tom. – Não descobrimos, mas existe.
Logo volta ao tom frenético:
− Com uma tremenda folha dourada no peito, a cor pode mudar de acordo com a graduação hierárquica. Dourado só para os fundadores.
− Folha de quê?
− Sou mais uma nota de dólar. Lembrar sempre o dízimo é fundamental. A gente vai precisar de iate para meditar no grande mar. – Esse é André, o prático da turma.
− Que dólar, que nada! O dízimo a gente berra no meio da colheita. Arranca os cabelos.
− Vou usar peruca, então. – Murcha Patrick.
− Tem que ser uma tremenda folha de maconha que é familiar a todos. – Andréia berra.
− Legal! Não podemos esquecer a desgraça que vivemos.
− Então precisaremos de avião para ir aos lugares sagrados: Colômbia, China, Afeganistão. Todos.
− Como assim?
− Produtores de coca, ópio, mescalina, haxixe, LSD...
− Sensacional!
A necessidade de um hino surge.
Astréia-Perséfone resolve a situação de empaque.
− Vamos usar a música do Paralamas do Sucesso, só mudamos a letra:

Tô segurando
Essa lanterna
Para os afogados
Sei que vou poder te salvar.

− Se é para pedir licença, a gente paga e usa a música toda:

Quando tá escuro
E ninguém te ouve
Quando chega a noite
E você pode chorar

Há uma luz no túnel dos desesperados
Há um cais de porto
Pra quem precisa chegar

Eu estou na lanterna dos afogados
Eu estou te esperando
Vê se não vai demorar

Uma noite longa
Pr'uma vida curta
Mas já não me importa
Basta poder te ajudar
E são tantas marcas
Que já fazem parte
Do que eu sou agora
Mais ainda sei me virar

Eu tô na lanterna dos afogados
Eu tô te esperando
Vê se não vai demorar

− As pias de água benta, de benzeção, devem resgatar a subjetividade. Por preferências, marcas indeléveis da individualidade, do eu soterrado dos fiéis: whiskey, vodka, cachaça e um licorzinho para arrematar.
− Bem, então as hóstias deverão ser de cocaína. – Berra André-Thor.
− E teremos confessionários privativos, onde os pecados serão dramatizados longe dos olhares críticos. Só na revivência poderão sentir o peso da injúria feita. – Profetiza Patrick-Osiris. – Cada um deve reviver sua droga de preferência. Penitência.
A cada risada os outros internos se aproximam. Novos companheiros já se abancam à mesa e logo são batizados com nomes para a nova vida.
A Igreja dos Filhos do Poder Superior cresce a galope. Dei-me conta da preponderância sobre o juízo que as drogas obtêm com facilidade. Elas seduzem. Qualquer caminho é rota de fuga do mundo que inverte valores e estarrece os mais sensíveis levando-os às rotas desenfreadas.
Ezequiel que a tudo assiste, aparentemente fechado em sua concha, isolado, grita:
− Panacas, vocês não estão criando nada! Não passam de crianças reproduzindo o que vêem. Irremediavelmente condicionados. Boiada de idiotas. Políticos, ladrões ou capachos: traficantes no poder das nações. A mentira maior do que a verdade e a manipulação é moeda corrente de livre trânsito.
Um suspiro tremente escapa de minha indignação:
− O quartel general está aqui dentro, mas o grosso da tropa está lá fora! O mundo está roto, a beleza enxovalhada e o ser humano virou ração para os bois gordos. Um trapo descartável.
Ezequiel se levanta:
− Fomos engolfados pela fraqueza. Entregamos nossas vidas de bandeja. Tentamos acertar errando. Tentamos sobreviver fugindo. Perdemos a guerra e nos tornamos presas fáceis, nos desumanizamos no imundo. Mergulhamos no mar estúpido da descartabilidade. Fomos invadidos, esquecemos de questionar e reivindicar o status de ser humano. Estúpidas e ruminantes vacas de presépio, onde na manjedoura vage a vulgarização dos sentidos. Em cada um de nós o mundo morre um pouco.
Silêncio total. Olhamo-nos perplexos. A consciência dói. É ferimento sem cura, estigma. O silêncio é uma mortalha.
A nova igreja aborta-se ao nascer. Jamais terá forças para driblar a igreja 666 que viceja pelos corredores do planeta.
Em vários cantos da Terra, em múltiplos idiomas, os crucificados elevam pensamentos enquanto são bombardeados pela mais mortífera artilharia que se tem notícia: a desesperança e a descrença que leva à desonra.
Alguém começa a cantar baixo, logo seguido por todos e o som aumenta, toma conta do espaço, das mentes:
“Vem, vamos embora
que esperar não é saber.
Quem sabe faz a hora
não espera acontecer.”

• De todos estes personagens reais apenas dois se mantém em recuperação. Alguns voltaram para a clínica, outros continuam absurdamente na ativa e algum está preso.
Os sobreviventes se engajaram em serviços beneficentes de auxílio aos dependentes na ativa e seus familiares. Os laços de irmandade jamais se desfizeram e embora distantes o contato é permanente e a felicidade partilhada a cada nova conquista de vida. Irmãos paridos na dor, irmãos unidos na recuperação.
Para sempre.

sábado, 22 de outubro de 2011

NE ME QUITTES PAS

Ne me quittes pas...
Não quero que sejas minha sombra
Nem eu a tua
Te quero luz fátua
Na distância próxima dos sentidos
Não quero viver à tua volta
Ou que vivas na minha
Quero a inteireza de estar presente
Na mente
Como forma viva
Incandescente
De sedução plena
Consciente
Permanente
E assim, totais
Sem metades
Sem partes
Inteiros em si mesmos
Dando-se e tomando
Sem pudores
Sem árduos amores
Simplesmente de mãos dadas
No infinito finito de nós dois
Absolutamente perfeito:
estar na mente, permanente,
inteiro, profundo, claro, real.
Façamos do encontro um romance
do instante uma fagulha de eternidade.
O resto é paisagem...
Vana Comissoli

URUBUSERVANDO

Uma sensação vaga, imprecisa, urubu adivinhando carniça pelo cheiro. Eu senti.
Ele era alto, moreno, de grandes e estarrecidos olhos negros. O cheiro de carniça estava soterrado sob um excitante Mont Blanc que devia custar quase, ou mais, do que um salário da plebe.
Eu sobrevoava os campos primaveris de minha fácil vida. Gostava de encantar, mais precisamente de seduzir, sem saber dos riscos servidos nos canapés de caviar com que me lambuzava nessa promessa de retornos jamais vindos.
Quando cheguei à festa o aroma me alcançou nos olhares famintos de minhas amigas, no ti ti ti que rapidamente foi confirmado ao enxergá-lo. Era ele, tive certeza. Vinha montado no cavalo branco e eu esperava seu beijo fingindo adormecida. Não era fingimento.
Envolvê-lo foi fácil, eu tinha todos os ingredientes necessários da receita de princesa. Flores, bombons, mimos... Princesas são tão bobas! Ouvem uma única melodia tocada em cravo secular onde a letra, canto-chão, repete: Felizes para sempre... Felizes para sempre...
Assim que pousei sobre ele a carniça exalou. Acontecia nas brincadeiras do amor. Amor, rosa vermelha, cálice de vinho tinto... Cálice de vinho tinto... Cálice de vinho tinto... branco, uísque, vodka, caipirinha caipira de cachaça, cálice... cálice,,, cálice. Copos... copos... copos... “Pai, afaste de mim esse cálice, de vinho tinto de sangue”.
No princípio culpei o vizinho que fedia e todos sabíamos, depois meu nariz osfrésico. Pulei para o alerta, deixei rastros de perfume de todos os tipos: reportagens, livros, avisos. Efeitos dos perfumes daninhos. Meu príncipe amava o odor afrodisíaco, hipnotizante, acostumara-se e não via mais a diferença, ou se a via enamorara-se por ele para sempre, acostumara os sentidos e se encharcava cada vez mais. Amor antigo, bem mais antigo do que eu, a rival.
Por fim decidi que meu amor soberano o envolveria se eu o exercesse à exaustão. Desenvolvi aromas de carinho, entusiastas, chorosos, lamentosos, impediriam que ele se inebriasse do cheiro de desespero e infâmia.
Fomos deixando os duques e duquesas de lado, tinham começado a respirar fundo quando chegávamos, embora disfarçando, para logo em seguida passarem a usar máscaras protetoras descaradamente na cara.
O príncipe já era quase um sapo disforme e coaxava noites a dentro transformando meu sono de pós prazer numa vigília de temor constante, numa guerra ímpia e injusta como ouço no hino de minha terra. Não mostrava valor, constância nenhuma.
Eu tinha que desistir. O urubu em mim crocitava não. Dizia que carniça tinha lá seu encanto, seu prazer. Quem sabe encontraria vida sob as carnes sanguinolentas, embaixo da aparência pútrida das olheiras. Quem sabe eu...
Não, por mais que ele me mostrasse as delícias de aspirar o odor branco das nuvens eu não podia, não conseguiria me habituar a ele.
Urubus comem carne morta, mas não apreciam se transformar em pasto de seus iguais, exatamente para manterem a sua, linda e fresca, ingerem a repugnante refeição. Eu fazia isso? Era isso que eu era? E a princesa, o castelo, o cavalo branco? Onde?
Eu voava, planava sobre tudo, além das nuvens e não me vinha coragem de abandonar a paisagem ruandense de 1994. Era a isso que assemelhava minha visão: facões cortando corpos, sonhos, planos. Cortando e estripando meu príncipe.
Os amigos dele tomaram o lugar daqueles que escolhem melhor seus perfumes e eu planava sobre eles também, cada vez mais alto e durante mais tempo, era a maneira de acreditar horizontes.
O príncipe tomou banho, sentou-se todo príncipe branco com o perfume nas mãos, acreditei em renascimento como uma entrega ao santo da devoção. Havia incenso queimando. Orei a ele que era meu tudo, meu deus particular:
- É tão importante? Mais importante que eu que te amo tanto? Te dou minha vida e meu ar? – Não mais chorosa perguntei amassada, minha própria pele se desfazendo.
Ele jogou aquele olhar comprido e doloroso que sempre fisgava o perdão dentro de mim. Vi alguma coisa verde dentro dele, muito rápido e logo branqueou.
Ronaldo abaixou a cabeça extremamente concentrado, fechou suas cortinas estendendo-me meu aviso de demissão e cheirou a primeira das cinco carreiras enfileiradas como soldados mercenários.

AO MESTRE, COM CARINHO

“ Um conto é um corte na vida. O que houve antes, ou virá depois não importa. A vida seguirá, mas aquele segmento será a polarização imutável trazida pelo antes e deslizando para o depois. Estímulo e retorno. Apenas isso e isso é muito.
O conto é como a fotografia: um instante capturado. Um reflexo do ímpeto.
A novela como a pintura: leva tempo para se terminar o quadro, mas sempre será duas dimensões.
O romance como a escultura: olhamos de todos os ângulos e temos a figura completa. A quarta dimensão, pois ao físico e palpável é acrescentada a alma.”
Eu bebia as palavras de Jorge Medina há muito tempo, ou toda a vida. Eu caminhara pelo deserto da busca cega e quase já desesperançava quando o conheci. Até então escrever era um passatempo, um alívio das tensões. A forma como as palavras se agitariam ou se descansariam no papel não tinha significado algum até encontrá-lo.
“Para que este corte, esta foto, tenha significado é necessário um conflito, sem conflito não há conto. Podemos criar uma rosca de açúcar ou um espinheiro agudo. A densidade terá o tom que escolhermos. Um conflito denso agregará mais valores e mais emoção.”
Eu desenhava mulheres nuas em meu caderno de notas e via que os olhos de Jorge volta e meia espiavam. Percebia uma nesga de sorriso? Não sei, mas quando eu lia meus contos temáticos sim, ele ria. Baixava a cabeça. Fechava os olhos, era um auditivo, e ria. Às vezes abertamente e isso me deliciava.
Era inevitável desenhar furiosamente, eu era auditiva ativa, meus olhos precisavam estar distraídos, ou melhor, minhas irrequietas mãos, para que eu capta-se aquela fala mansa carregada de preciosidades que transformariam minha vida.

“Maria entrou no quarto cheia de culpa. Eu também era culpado.
(O ruído rápido e quase ininterrupto do teclado, era música aos ouvidos de Jorge Medina e as idéias quebravam as paredes do quarto pondo-o em vôo livre.)
Nem por um momento deixei de ver meu irmão entrando na igreja, os olhos prendendo as lágrimas. Era o dia de desposar Maria e mostrar seu troféu até que a morte os separasse. Aceitei ser padrinho e lá estava com a gravata me enforcando, minha cabeça girando em cima dos ombros, prestes a cair. O perfume da noiva me alcançava como se ela ainda estivesse em meus braços. Maria, deliciosa, suave, rosada, agitada, urgente na chorosa e lamurienta despedida da véspera.
(Jorge bateu o cigarro e abanou a fumaça quase palpável. Ficaria bom, este conto ficaria bom, pensou com o velho sentimento de dominar o mundo, as pessoas, através das palavras.)

Na primeira aula mandou que nos apresentasse como se fôssemos nosso colega da frente. Algum tempo depois entendi que estava reconhecendo nosso feeling. Para compor um personagem precisamos aprender a captar as pessoas à nossa volta, isso não significa inventar o que nos der na cabeça. É preciso manter a coerência mesmo que incoerente do personagem, seu perfil, seus pensamentos íntimos que não serão descritos, mas percebidos através de seus atos.
Adequar a linguagem aos acontecimentos.
Ação? Escreva numa linguagem rápida, quase sem tempo do leitor respirar, mas não o sufoque.
Dor? Use palavras trágicas, que chorem nas letras. Observe o som das vogais, seu crescente, também falam, ou desmaiam no decrescente.
Saudade? Estique as palavras, deixe que elas relembrem os momentos que se foram.
Ler onde não está escrito. O segredo do conto: o subliminar, magistralmente atingido por Machado de Assis, na Missa do Galo. Perseguido quase sangrentamente por todos os outros, estrela de difícil encontro.

“Maria encontrara meu irmão Osório como uma luz, uma salvação, natural que se encantasse e visse nele possibilidades de amor. Acho mesmo que o amava sinceramente. Afinal o amor é correspondência e preenchimento de necessidades, apesar de deliciarmo-nos enfeitando-o com a aura que sobrou do romantismo.
O que ela não contava era com a paixão, a louca, súbita e irreverente paixão. Como gostamos de nos apaixonar! Vemos apenas a paixão. Enganamo-nos dizendo que é um rosto, um olhar... Não é nada disso, é uma emoção sedutora tique taqueando dentro de nós, acelerando o sangue, tirando o sono, tornando-nos escravos de um tilintar de voz.
Maria respirava paixão e tentava se livrar desta droga casando-se com Osório por amor plácido e rotineiro. Nada de frenesi. Dia de primavera sem o calor cáustico e excitante do verão.
Não podemos impedir o céu de chover, a noite de chegar, a planta de florescer, mesmo que isso, momentaneamente faça o sol adormecer, o dia descansar, a planta fenecer. Maria descobriria em meus braços.
Eu voltara para o casamento de meu meio irmão tão diferente de mim: calmo, de passos certos, colocando tijolo a tijolo as paredes de sua vida. Eu fora agraciado com um mestrado em Lisboa e, mesmo sem deixar de lado a importância de meu objetivo, resolvi que era uma oportunidade imperdível para virar do avesso a velha Europa. Livre de pai, mãe, casa, meias lavadas...
Entrei fundo nas tascas portuguesas onde aprendi a gostar de cerveja importada, terminar de quebrar minhas grades e rir com sonoridade retumbante. Retumbante era o que guardava de minha terra deitada em leito que eu renegava.
Sentávamo-nos descabelados e aéreos nos bares de Lisboa a debochar da cidade florida. Jovens insustentos a falar do que imaginávamos saber. A mesada, sempre escassa, chegando de todos os cantos do mundo para que pudéssemos divagar nas nuvens de nossos baseados, encontrando profundidade nas vidas de nossos escritores favoritos.
Citávamos Pessoa como se ele estivesse a sustentar Mário de Sá Carneiro na mesa ao lado e a sentíamos paixão pelos corpos que Miguel Esteves Cardoso possuiu.
Lá assim era e eu aprendera a ser inconsequente, estrangeiro tudo pode.
Tanta diferença entre eu e Osório devia-se ao fato termos de mães diferentes. A minha era uma jovem senhora de bem com a vida e a dele, uma chata, presa no ante ontem. Nesta escolha a minha ganhou meu pai que se tornou um cara menos sisudo e mais disposto a tomar um pilequinho nos churrascos familiares. Quem saiu perdendo ou ganhando? Não tenho a menor idéia, o fato é que éramos diferentes, cada um ganhou e perdeu um pouco. Infelizmente os dois ganharam Maria.”
- Não posso me esquecer da verossimilhança amanhã, na aula, devo reforçar este aspecto importante dos personagens. Se os alunos listarem todas as características, começando pelas físicas e terminando nas psíquicas, entenderão melhor.
A economia de palavras. Quantas já apaguei! Economia, limpeza: chô quês sujos e repetitivos, chô pronomes desnecessários, chô linguagem poética numa prosa. A menos que se deseje falar de flor, passarinho e borboleta. Eu quero isso? Preciso ter certeza dessa resposta.

- As qualidades físicas devem retratar as psíquicas.
Anotei a informação e criei mil personagens diferentes a partir daí. Antes de dormir os nomeava, via seus movimentos nos sonhos e meus cadernos se encheram de desenhos com fisionomias feitas a facão, mas expressando sentimentos cortantes.
Estou louca ou Jorge Medina me olha mais do que aos outros?
- Vamos imaginar dois personagens. Nossos personagens. Paulo e Márcia. Listem ações que se desenrolarão para um e para outro. Listem os verbos determinantes dessas ações, as dele e as dela, vejam a convergência. Não permitam que idéias se atravessem, mantenham o foco!
Como gostaria de ser estenógrafa! Não perder nem a respiração entre as palavras. Se eu seguisse à risca seria uma boa escritora? Nem me atrevia a pensar em romance.
- O conto é o gênero mais complexo de todos, não há espaço para vacilo, minúcias, palavras que não sejam absolutamente necessárias.
Mudei de idéia sobre tudo.

“Não foi intencional. Ela saía do banho e eu entrava. Meio nua? Não vi nada, só os olhos flamejantes que me examinaram. Ainda não tínhamos nos encontrado, embora minha vinda estivesse anunciada. Estava nos preparativos da cerimônia quando joguei as malas no quarto de hóspedes, furioso. Tinham dado o meu, o meu, para aquelazinha que aportara de pára-quedas na minha casa.
Dois pontos, luz azul, arco voltaico: Maria e eu.
Depois aquela coisa besta de apresentação, jantar incômodo das pernas se tocando por acidente e os olhos irrequietos e prometedores. Eu a despia junto com a pele dos tomates, a comia no filé à parmegiana e lambia na sobremesa de sorvete.
Foi simples e sem culpa. Uma noite, que mal faria? Depois... Impossível para sempre. Não era o recado que meu corpo passava durante a marcha nupcial féretra.”

No dia seguinte a aula foi sobre neologismos. A capacidade de criar palavras, a sagacidade de colocá-las no texto e a profunda coragem de fazê-lo.
“O mestre neste campo minado foi João Guimarães Rosa. Levou suas obras ao instigante mundo, onde recria a língua e faz com que os leitores tentem decifrar a todo momento os seus “achados” semântico, morfológico, e, até mesmo, sintático ou morfossintático, como se a literatura não fosse apenas algo sério, mas também algo criativo, artístico e misterioso.
E a literatura não é mesmo algo sério, é brincadeira do intelecto, liberdade de sentir, recriar a vida numa performance que nos deixe de queixo caído.”
Féretra mereceu a aula.

“Entrei na cozinha cantarolando, sou da paz de manhã, gosto do sol, ele esteja no céu ou não. Sabia que a lua-de-mel tinha sido adiada pelas cinzas do vulcão chileno que teimava em colocar uma sensação de fim-de-mundo. Apocalipse day.
Teria que parecer como sempre e fazer de conta que não tivera ouvidos de cão para captar ruídos que desejava meus e de Maria. O desgraçado quarto de hóspedes era no sótão e eu não ouvia nada naquela casa antiga de paredes camufladora dos segredos de alcova.
Fiquei mudo. Pavor.
Estavam os quatro na cozinha. Meus pais com as pistolas tremendo nas mãos, apontando-me. A de minha mãe, com belo cabo de madrepérola, teimando em mirar o chão. Meu pai segurando com as duas mãos para esconder o tremor e Osório direto nos meio de meus olhos. O tiro seria imbatível.
Maria chorava balançando o corpo e a cara marcada por hematomas se ergueu ao meu bom dia fingido.”

Jorge escrevia tramas tempestuosas e paixões escaldantes. Era a densidade, dizia ele, enquanto eu o copiava e punha ainda mais ardência. Excitaria sua curiosidade ao ponto de ebulição que a minha estava? Seus livros eram ambrosia que me açucarava.
Paixão, aquela mesma que Orlando sentira por Maria. Eu não queria amor algum! Queria Jorge e suas palavras mágicas. Queria pulsar como os personagens. Eu: Ana Karenina, Lady Godiva, Madame Bovari. É querer muito? É só literatura, me convencia.
Jorge escrevendo, Jorge falando, Jorge lendo, Jorge beijando, Jorge me chamando, Jorge, Orlando... Orlando, Jorge...

“Maria, a Louca. Pela Graça de Deus, Rainha de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África, Senhora da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, etc.
Pela Graça de Deus, Rainha do Reino Unido de Portugal, Brasil e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África, Senhora da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, etc.
Nada disso! Pela graça de uma trepada sensacional, a maluca resolveu não fazer amor com o marido na noite de núpcias e, ainda por cima, apontou com todas as letras o infrator.”

Os temas, as formas, a linguagem... Aula a aula compondo a trama do que viria a ser eu.
“Sobre o tapete, ou duro piso, a gente
compõe de corpo a corpo a úmida trama.”
Drummond saberia que isto também é amor? Que pode haver paixão entre o escritor e a escrita? Que posso ter mil Jorges, ser bígama, fiel, santa e puta?
Hoje, na frente do teclado onde as palavras aparentemente surgem sem uma nesga sequer de meu mestre, eu o relembro e devo a ele mais um livro editado e a entrevista que me espera para falar sobre o conto. O conto que foi o fruto deste amor incondicional.

Final aberto? Final fechado?
Qual se adéqua mais ao tema proposto?
Vamos deixar assim, ainda não parei de escrever...

Vana Comissoli

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

ARMADILHA

A discussão estava acirrada. As palavras se batiam e contorciam no ar como bolas de aço: um estrondo. Só não havia tapas na cara por consciente respeito às idéias alheias, mas a vontade era de ser um pouco mais autêntico e estraçalhar alguns sorrisos mofados.
Gabriela, sarcástica e ferina, bombardeava a paixão, o encontro sem sentido de corpos. O sexo pelo sexo. Coisa de animal, dizia com convicção. Defendia suas filosofias com unhas e dentes, se baseavam em longas leituras e mais longas meditações. Arranhava quando a contradiziam.
- Paixão causa dor, enlouquecemos, perdemos os parâmetros, não enxergamos a pessoa que a catalisa, na verdade ela se torna um meio e não um fim. Não é importante, embora nos pareça a pessoa mais importante do mundo, única e insubstituível. Por breve tempo, o tempo necessário de provarmos que a conquistamos, um souvenir na viagem dos sentidos.
Relacionar-se é muito mais profundo do que o breve mergulho na sensação. Sou racional, madura, posicionada. Não me apaixono, escolho. Recuso-me a ser um pedaço de carne pendurado no açougue.
Cícero colocou sobre a mesa, como sobremesa esperada, seu sorriso de escárnio. Há muito que desejava essa mulher, talvez por se tão teimosa e se valer, era excitante e o deixava ouriçado.
Ela empurrou o sorriso até que se estatelasse no chão.
- Não seja ridículo! Nem tenta dizer que sou sapatão. Se fosse não teria pejo algum em mostrar, mas que não me deito com qualquer enxovalhado que apareça, não me deito. Me respeito e não estou nem aí para o que possas pensar. Tu não passas de um saco de porra.
Talvez ela tivesse razão. Lembrou rápida e vagamente das tantas mulheres que tivera, tão efêmeras quando um aguaceiro de verão. Uma ou outra permaneceram em sua vida até se mostrarem diferentes do menu apresentado: nada de filé mignon, feijão com arroz insosso. Teria começado de forma errada? Se tivesse dado tempo será que...
Não houve tempo, talvez um breve latejar. Logo as vozes se perderam para o lado. Os dois fingiam discordar dizendo as mesmas coisas. A língua portuguesa possui desvãos que permitem se dizer a mesma coisa de ene maneiras. A verdade rondando sub-reptícia, pincelando de verde o que é amarelo e azul.
Ele estava encolhido, logo saberia que era uma boa estratégia embora tivesse começado espontaneamente, se sentira pequeno e retirava seu time de campo com delicadeza para não passar vergonha. Não via hora de se livrar dela que metralhava seu sexo físico e espiritual. Era uma intelectual chata e prepotente, carimbara assim dentro dele e quem quer saber de mulher metida a ter idéias? Se quer é uma boa mulher de cama. Parece que Gabriela tinha alguma razão. Ou todas?
- ... claro achas que estás diante de uma mulher frígida que cheira a absorvente higiênico, limpa e branca como uma propaganda deles. Morro de rir! O que és? Uma criança? Um éfebo?
Ele não coçaria a cabeça com ar de dúvida de forma alguma. Saco! Não podia falar mais fácil? Agora teria que fazer de conta o entendimento que não veio. Disfarçou, chamou o garçom, pediu outro chope, melhor sair cambaleando do que entregar os pontos. Era uma bruxa, a bandida.
-É antropológico. – arriscou na esperança de falar bonito.
Ela concordou e acrescentou que sim, era uma questão cultural, podia ser mudado se as mulheres não se preocupassem tanto com o batom e mais com a cabeça. Cabelos são bonitos e sedutores, mas cansam se não têm nada sob ele.
Cícero imaginou que se ela fosse nadadora, seria uma campeã, tinha um fôlego dos demônios. Não sabia por que ficava ali sentado, grudado nas palavras e quase não ouvindo nada. O perfume talvez? Qual seria? Um aroma exótico, vermelho. Uma sensualidade que o atava e fazia a vontade escorregar. Um jogo que o prendia sem esperar o final desejado ou já sabendo de antemão qual seria?
Ela jogou a carta sobre a mesa, sem aviso, quase bateu na cara dele. Segurou forte, tinha acabado de afirmar que mulheres cultas não têm tempo para sexo infantil, pensam demais e estão acima de tudo. A risada dela foi um ás de ouros:
- Cuidado, podes te enganar...
Foi a deixa para o assunto virar de ponta cabeça, rodopiar sobre si mesmo e se deitar nos olhares e nas pernas que se tocaram. Cícero sentiu os pelos dos braços levantarem como leões e bater em seu sexo igual sino de igreja avisando incêndio. Calma, sugeriu a si mesmo e arrastou a cadeira mudando as posições dos amigos, obrigando todos a um “chega prá lá”
Os olhos de Gabriela se divertiam, tinha fisgado um bobo e gostava desse brinquedo. Todo caçador um dia caça é.
Ele foi sinuoso, cobra mandada. Então quer dizer que também pensas em sexo? E como é? Precisa pedir com licença? Chegar de fraque?
Ela o puxou pela gola da camisa e passou a mão em seu peito, sussurrou ao ouvido: Gosto assim. Sentiu os mamilos enijecidos.
- Vou te beijar aqui, na frente de todo mundo. Um beijo longo e molhado, farei com que caias no chão.
Risada escarlate, já tinha lido isso em algum lugar, frase mais idiota, mas riu assim mesmo, já esquecida de Cortázar, Saramago e todos seus outros amantes que não podiam lhe passar a mão áspera. O riso terminou dentro da boca de Cícero. Quanto tempo? O suficiente para os amigos baterem palmas e cansarem de bater.
Algum disfarce ainda foi tentado, bolhas de sabão estourando no ar. Estavam presos aos olhos um do outro, às mãos, agora impacientes, e ao centro do corpo que latejava esquecendo o vernáculo, as palavras são tão simples no sexo! Ai! Vai! Fui! Hã! Precisa mais? Palavras mais sábias, descritivas e empolgantes não há.
Ele reafirmou sua masculinidade trazendo a mão de Gabriela sobre seu membro rijo, exigente. Esqueceu as diferenças, se impôs macho que era. A erudição liquefeita no espasmo do prazer cavalgando as torções dos corpos que procuravam abrigo.
Ele levantou puxando-a para um canto retirado. Todo mundo fez de conta que não entendeu, nem viu nada. O garçom ficou feliz com a gorjeta gorda e virou escudo.
Cícero viajava uma aventura em camelo, inusitada e desértica de experiência.
Cenas de sexo... Serão mesmo sempre as mesmas? Ou tem cheiro de novidade a cada vez? Perdi a racionalidade... Últimos pensamentos de Gabriela.
Agarrou-se ao homem, louca de fome e sede e ele não se negou a ser vinho e pão.
Vira e ela sentiu o corpo vibrando, o impossível acontecendo num chão de bar, na sem vergonhice da paz do sexo.
Dedos que destrincham caminhos, se tornam únicos e para sempre a primeira vez.
O bar falava alto para encobrir o que não deve ser partilhado em palco, mas vivido no escuso da coxia. O entusiasmo quebrando as barreiras e a liberdade abrindo suas divinas asas num pedido de entra, vai, vem, deixa, aqui, gosto, gozo, ai, juntos, mais. Descanso.
Uma conversa ao pé do ouvido lambido, penetração auditiva e o corpo dizendo que estava pronto, vamos, vem comigo, de que jeito? Na boca, nos seios, o sêmen, creme hidratante. O domínio. De quem sobre quem? Entrega, doação, margem, rio sem fundo, poço, mergulhos, retorno, onda, espasmo. Navegamos.
Afinal estão prontos. Gabriela puxa as palavras, as filosofias, se veste com elas e beija a boca que a pouco a desnudou de tudo. Ele se certifica que mulheres inteligentes têm vida no meio das pernas.
Encontro, pensa Cícero.
Armadilha, ela sussurra.

domingo, 7 de agosto de 2011

PROFETAS TÊM CABELOS BRANCOS




Anda por mundo branco, nem sombra há. Sombras são escuras e escuro não há. Árvores brancas com seus brancos galhos não se silhuetam no ocaso branco.
Lembra vagamente de pessoas. Houveram antes que esta nuvem sem embaço cobrisse o sol, o mal e quaisquer outras vidas, reais ou sonhadas.
É fácil e trágico caminhar sem passado neste branco que deveria ser luz e não é. Talvez seja um sumidouro, boca-de-lobo sugando a espuma de detergentes nitrogenados que escorregam plasticamente sobre as águas do Tietê. Pelo lado bom encobre o que foi um dia água e agora é algo que não se sabe o que é. Sob essa massa gelatinosa e fétida está o vagido de um menino de rua que nunca pode deixar de ser neném, não deu tempo, antes apodreceram os ouvidos.
Começa a rir à bandeiras despregadas ou pregadas em mastros brancos tremulando paz lá em cima, inatingível ou no chão, uma vez despregadas e caídas. Paz um dia houve? Alguns, ou muitos, ou todos, homens com estandartes vermelhos, amarelos, azuis ou todas cores em um só, divisória armada até os dentes contra tudo, ou Deus, podia ser a favor, pelo menos uma melodramática mentira de pregar a decência, o perdão, alforria ou prisão. Qualquer coisa serviria para flamejar a beleza dos estandartes coloridos sob o céu para dizer por que lado se morria.
Procura em herói solitário. Como? Apenas ele é. Resolve lavar o mundo encardido, fundo de panela grudado de gordura Mac Donald’s com sabão a fazer espuma que água nenhuma enxágua. Arranca a ponta dos dedos na tentativa até perceber que os seus não bastam precisariam todos que já tivessem vividos.
De dentro de um buraco com os olhos à superfície veria horizontes por todos os lados, assustadores 360º de nada. Um pensamento branco sussurrou que algo haveria depois, ou antes deles. Estava cansado, caíra neste limbo branco num sonho, era assim que acontecera, tão logo despertasse se reconheceria num sonho colorido.
No tempo que o tempo era, as pálpebras descidas ainda assim traziam algo em torno de claro e escuro, com flashs eventuais, até mesmo moscas luminosas passeavam trazendo notícias de brilhos. Talvez suas pálpebras tivessem caído na lata de leite condensado e não conseguissem se abrir, pesadas e inúteis, viera a noite sem lua e não havia possibilidade de outra coisa atravessar a firme e branca parede açucarada.
No antes do horizonte percebe movimentos em câmera lenta, ou seria apenas um teatro de sombras brancas? Parece que sim e guerras campesinas, campeiras, urbanas, corpo a corpo, teleguiadas mostravam suas esqueléticas sombras. Nem o sangue jorrado aos borbotões era vermelho, já esgotara o carmim dor.
Entre pausas de homens degolados caminha o profeta. Os longos cabelos brancos ao vento sem cor, anuncia novos tempos de fraternidade. Quando terão cabelos ruivos, ou verdes? Crêem tanto que cuidados esquecem e alguma discussão de alcova tórrida desenterra uma e outra e outra bela e sensual Helena por quem vale a pena lutar, morrer e matar.
As helenas se deitam na terra se transformando em estados, países, regiões, campos acres servindo ao mesmo mortal objetivo. Dominadora da arte da manha, manhã sempre vinda, se retraem em notas de dinheiro, muito mais valoroso que o mero papel que dizem não ser feito. Suas múltiplas formas retalham Osíris pelos campos alagadiços de nossos tantos Nilos. Em cada curva uma torneira de sangue e se luta por justa causa até que não sobre vontade de viver.
Petróleo, ouro, diamantes, sede, fome, todos os sobrenomes posteriores a primeira: Helena de Tróia. Tánatos se justificando para realizar à volta da vida, segundo visionários, o fim total de qualquer modo. Momento onde o homem, tomando na mão a foice, antecipa o trabalho para se igualar a um possível e desconhecido criador.
Dói o cotovelo, aperta o sapato no pé. Há algo sob o chão instável. Chama: alguém aí? Nenhuma resposta. É sobre cadáveres que caminha. Um gigantesco Museu do Holocausto, do homem para o homem.
Nunca chora? Por medo? Assombro? Solidão?
Intui que não está sozinho, apenas os mundos não se tocam, não compartilham, nem se abraçam. Nada, a distância é a salvação.
Está num deserto. É isso! Alucina. Cadê o Pequeno Príncipe e sua rosa? Cadê a raposa para responder que a jibóia tinha comido um elefante e chapéu é coisa para quem não sabe ver. Pelo menos uma vez a resposta certa. É essa a resposta? Esse branco sem fim? Armadilha.
O horizonte para trás não importa muito, logo tocará o da frente, haverá gente, vestígios de véus. Idade das Flores se avizinha, a Nova Era, é a hora e a vez de Aquário.
O branco é transição, tudo será paz e amor, maconhavam fugas os hippies felizes enquanto enterravam a pior arma, o dinheiro, em caixões de chumbo. Imagine, orava John Lenon: “Você pode dizer que eu sou um sonhador, mas eu não sou o único. Eu tenho a esperança de que um dia
você se juntará a nós e o mundo será como um só”.
Adeus necessidade de crack, oxi, haxixe, armas, bombas, governos, pele, roupa, insanidade! Não precisamos mais de vocês. Uma única religião, a dos homens, um único chão, a Terra. Prisões virarão estábulos onde vacas de ubres de torneira despejaram leite para todas as cores de fome. As favelas se tornaram belos condomínios de jardins horizontais. A nova rotação do planeta o porá na curva do clima ameno em todos os hemisférios e os ursos polares simplesmente tirarão seu casaco e os pinguins boiarão de barriga para cima em Búzios enquanto engolem raios de sol.
A revolução dos muros e das fechaduras farão com que se atirem das pontes numa água de PH 7.0, sorrindo para o futuro viveiro de peixes. Muito melhor destinos do que aprisionar homens em suas casamatas.
Se ouvia esbanjando para o horizonte além a alegria do sonho afinal possível. Era só atravessar o portal 11:11 e já ouvia a sinfonia das estrelas anãs.
Surgiram os 2 primeiros homens do horizonte tão próximo, preparou-se para comemorar:
“Distância de 40 passos, no sinal atirem ao mesmo tempo.”

quarta-feira, 22 de junho de 2011

MACHO MACHO MAN

Gostamos de execrar os grandes, seja indivíduo ou estado. Não é assim que os doloridos de cotovelos fazem? Ah, gentinha descornada que está sempre a olhar o rabo do pavão alheio enquanto banca de peru gorgolejando glu-glus repetitivos e risíveis. É assim... Desviar a atenção ou acautelar-se antes que as metralhadoras se voltem para peitos com quilômetros de ficha corrida ainda sob o tapete lavado a Pinho Sol diário.
Políticos americanos atléticos e bonitões foram “pinçados” enviando fotos para senhorinhas disponíveis e loucas para acreditar que o gatão era livre, leve e solto além de ilustre desconhecido e não manjado pelos repórteres de plantão. Os hakers bisbilhotaram e acharam pratos quentes na bandeja, puseram a boca no mouse, digo, as fotos na Internet, a mais democrática das instituições. Teve renúncia, mea culpa e contrição diante de mulher grávida. Para salvar o pobrezinho rico, afinal era bem apanhado, se não tivesse dado esse quebra pau poderia até pedir “emprestada” a foto dele, pensei: tem mulher que é foda, fica grávida e fecha as pernas, dá merda!
Se a morada virtual das delícias pesca até político americano que considero acima de todos os males e macumbas (vai ver penso que EUA é parecido com o Brasil. Ha, ha, ha...). O que não aconteceria com a raia miúda? O pavor bateu geral. Quantas cabeças mal casadas, ou nem tanto, dão uma “voltinha” para estimular? Quem não sabe que funciona? Se tiver que contar esta história da Carochinha de ser desgraçado, cheio de filho que não pode abandonar, para render horrores de bucetinhas ajoelhadas no altar fálico, a gente enfrenta.
Começou uma troca de email que ultrapassou em adesões todas as correntes do Buda do dinheiro, Anjo da felicidade e de todos os Santos, urgentes ou não. Falei até com chinês, não me pergunta como, mas no desespero a gente entende aramaico. A coisa foi se fundamentando, o pavor crescendo, casamento desmaiando, senhorinhas se enforcando, sei lá mais o que.
Aí explodiu aquela revolta dos bombeiros no Rio de janeiro, 2000 homens, machos prá caramba, se uniram na força da cara e da coragem e foram às ruas, com ídolo do surf e tudo. Deu prisão para um pacote de caras, logo foram libertados. Se esta causa nobre e restrita tinha perdão, notícia em revista, apoio e aclamação, imagina uma causa mundial, alinhavada pela Internet e muito mais justa, até a FTP daria a maior força.
A banda larga, curta, discada ou não, e toda a parafernália comunicativa à mão congestionou. Os relógios fugiram de Greenwich, os despertadores criaram a super hora universal, até os Ets devem ter observado o levante e se interessado. Não vem me dizer que extra terrestre não dá umas puladas de muro que nisso não acredito. Macho é macho em qualquer sistema solar. O Deus não é infinito? Então fez tudo igualzinho, só pequenas diferenças verdes e amarelas, mais nada.
Só não fez notícia retumbante por que tinha repórter, diretor de mídia e até faxineiro de estúdio interessadíssimo no processo e tinha que ser segredo bem guardado senão estragava a eficácia do levante.
Começaram a azeitar as engrenagens com centenas das mais cultas, intelectuais e até científicas cabeças do planeta.
Um feriado sensacional onde tudo pára é o Natal, lançou um cuiabano de nó virado. Claro que não, berrou um italiano circense, e os muçulmanos, judeus, budistas? Vamos deixar os irmãos de fora? Corta essa foi a sonora indignação do moscovita.
No meio da dificuldade de acertos um nordestino arretado, de dedo em riste, este tinha dedo, distribuiu buchada de bode no mundo inteiro. Os moçambicanos adoraram, fazia tempo que não viam uma farra de carne, nem aí se era de bode, vaca ou peru assado. Deu problema, cada um almoçava num horário diferente e a sesta dos gaúchos, mexicanos e afins atrasou os trabalhos. Ficou acertado que não haveria mais acepipes. Só discretos drinques. Discretos, nada de encher a cara que vão dormir no meio dos acertos os do litro e meio. Vieram apupos de todo o lado, de norte a sul, leste e oeste, mas acabaram aceitando em prol da causa.
Em consenso o dia da reivindicação seria 31 de dezembro, e desta vez bateria meia noite no mesmo instante em todo o planetinha. Nada de exclusividade, a chamada à ordem seria geral, quem se insurgisse teria sua foto peladão, a verdadeira, colocada internacionalmente (o internacional foi pequeno deslize, acontece...) na Internet.
Bandeiras foram criadas em preto e branco com um gavião explodindo energia no meio. Artistas plásticos doaram suas criações. Foram tantas que se resolveu fazer várias bandeiras e com isso muitas alas foram criadas: dos machões, dos disfarçados de empresários, dos garis, dos cheios da grana. Muitas especializações. Os mafiosos relutaram em ter uma ala, afinal mostrar a cara não era seu estilo.
Um marqueteiro disse que sem slogan não funcionaria. Problemasso! Até prêmios Nobel entraram no páreo nessa hora. Mais difícil que escolher os “fardões” da Academia Brasileira de Letras. Lapso, esta escolha é fácil, basta ter um QI esquentado por indicações da pesada, gostar de se fantasiar de palhaço e ser chegado em marimbondos de fogo.
Por unanimidade resolveram que deveria ser muito simples. Não eram machos? Macho bastava. Não houve consenso, muito fraca. Lá dos perdidos ventosos da Patagônia, escondida atrás de outras, veio a voz: Dava para ser Macho, macho, man? Acharam “A sacada”. A música homônima passou batido, nem se lembraram dos machos que a rebolavam. Deixa quieto!
A vestimenta seria ao gosto do participante, escolher daria muito pano para manga e em alguns pontos do planeta, faltaria pano, todo mundo sabe, inverno aqui, verão lá. Única exigência é que os escoceses abrissem mão do kilt e os mulçumanos dos vestidões, todo mundo de calça comprida, de macho. Lembraram da roupa que serve a rico e a pobre, de direita, de esquerda e do centro: o jeans. Aplauso geral. Todo mundo de jeans e camisa branca. Branco não, gritou Ling Ching Ling, é cor de luto. Ai, cada passo um impasse, ou cada impasse um passo? Só se fosse para trás. Essa torre de babel é de desgovernar os miolos. Cada um com a camisa que quiser, desde que não tenha desenhos, mangas bufantes ou foto de homem no peito, a sua própria pode.
Afinal, depois de muito é, mas não é, chegou o dia. Já se tinham passado 2 anos, as paqueras estavam frias, as infidelidades discretíssimas e as mulheres desesperadas. As esposas cansadas de tanto dar e as amantes cansadas de não ter para quem dar. A ordem yang-ying do avesso. Haja filosofia para explicar este entre aspas depois! Tremendo trabalho para machos pensantes.
As badaladas do relógio foram contadas no ritmo certo e a mulherada sem entender coisa nenhuma, o peru nem tinha ido para o forno, as calcinhas brancas estavam secando no varal e a homarada toda na rua soltando foguete? O que é isso?
Rio de Janeiro, Tremembé das Almas, Calgary, Cartagena, Glasgow e todas as cidades, conhecidas, desconhecidas, as que se ouve falar muito, as nem tanto, as que nunca se viu no mapa. Em todas, lá estavam os homens com estandartes, palavras de ordem, gritaria, coisa de macho, desfilando pelas ruas, estradas, vielas, campos, planícies geladas, altas montanhas, precipícios e qualquer buraco que exista.
Foi um Deus nos acuda, o levante desta vez foi sensacional, não houve uma só desistência, teve pai que levou bebê de colo, claro que macho. Todo tipo de veículo de carrão até riquichá. Um fato que se tornaria épico.
No calor da hora, fosse inverno ou verão de torrar, os fantásticos se pelaram e aí, sabe-se lá como, já que nenhum macho, masculino homem estava diante do computador, a notícia se espalhou e foi roupa voando para todo lado.
Os machos, mas nem tanto, que não tinham participado da estruturação do evento ficaram doidinhos, quiseram passar a mão, dar uma pegadinha. Foi reação total, nada disso, só podia olhar. Alguns até ficaram entristecidos, sabe como é... Na hora de um aperto...
O sucesso se mostrava estrondoso e os machões já visualizavam a tonelada de emails que receberiam, mulher para escolher, até a Débora Secco chamaria a surfistinha de rol pequeno. Os que se entusiasmavam muito batiam continência, mostravam serviço. Ninguém se incomodou, afinal macho é para isso mesmo. Ficaram orgulhosos dos de sangue quente.
No meio da euforia generalizada, uma mulher pequena, meio e meio, meio quilo, com cara de todo dia, saiu da assistência com rolo da massa na mão. As outras, de olhos puxados, cabeleira carapinha ou loira escorrida, viram aquilo e...
Não saiu notícia no jornal, os tvs ficaram caladinhas, nem pé de página teve.
As mulheres não fizeram levante, não mostraram a bunda, nem reviraram os olhos. Pra que se tinham a única coisa que dobra homem?
Por décadas a Internet teve a mais fiel comunicação inimaginável.






sábado, 18 de junho de 2011

AGONIA

Ela estava completamente nua e branca à sua frente. Sem olhos, sem fala, sem convite para nenhum dos sentidos. Parecia que não tinha alma, nem sabor. Era o momento da agonia de Pedro Navarra.
Talvez se desenhasse hieróglifos houvesse alguma coisa a rotar na brancura sem frestas que fechava todas as possibilidades. Acontece que não era escritor, nem sequer esculpia e muito menos filmava. Era pintor.
A palheta ao lado dormitava tédio. Os pincéis desanimados sobravam todos inertes. De novo Pedro espremeu idéias, a cabeça tão branca quanto a tela à sua frente. Miséria - pensou miseravelmente condoído de si mesmo - pintor tem que pintar todos os dias. As idéias devem fervilhar como chaleira em ebulição, não faz mal que queime, o importante é cozinhar e não em banho-maria.
Ficou parado, a fome se esqueceu dele, os cigarros não, muito menos o vinho que dançava um tinto rock frenético. A inspiração escondida embaixo do sofá, ou queimando na lareira apagada dos pensamentos.
Olhou pelas janelas, o rio andava no passo moroso tão conhecido. Ele partia de si mesmo:
“Adeus, meu amor
Eu vou partir
e já estou saudades a sentir.”
Quem inventou esta bosta de letra para “Tristesse” de Chopin? Que merda! Não sou Chopin e nem sei diferenciar o dó do lá. Só tenho “lá” no fundo um “dó” danado de mim. Esculhambei tudo, perdi a musa, virei a mesa, rasguei a carta, risquei o nome!
Olhou a tela vestida de fantasma, só faltavam as correntes, nem essas ele conseguia enxergar. Talvez se a enchesse de correntes enosadas em si mesmas poderia sair alguma coisa. Bebeu outro copo de vinho como se toma água, a vertigem entrou no sangue, tremeu as bases, viajou na maionese.
A tela inchou, se contorceu, foi nascendo... Nasceu escultura. Monstro marinho de sete cabeças, enroscado e enroscando as pernas, os braço, pescoço, grito preso, socorro desmaiado.
Logo a peça uniu barro sobre barro e 20 000 léguas submarinas surgiram absurdamente possíveis quando tal mergulho é impossível quimera. Foi um festim de formas que nasciam e renasciam sem parar, criaram um Mágico de Oz voluptuoso e incansável, atravessando versos onde verso não tinha. Cala-te Gyl Ferrys, quem te chamou aqui? E o homem sofrendo seus poemas como se fosse Pedro o inspirador, soando na cabeça, fazendo revelações irreveláveis.

“Esse ser mecânico que sou,
Movido a paixão e de amor,
Anda enlaçado pelos punhos,
Desde o início do mês Junho,
Atado a uma penosa solidão...

Homem-de-lata-robô eu sou.
Ando à procura de um coração...

Atirou-se sobre a tela pronto a desmascará-la. Feito nulo, desejo esvoaçante. Ela voou sobre ele, prendeu-se no teto, encolheu o chão. Virou filme do avesso e era Benjamin Button, com sua cara sem tirar nem por, que saltou velho e permanentemente velho, a juventude sem chegar nem mesmo ao contrário. Canto chão: filme agora não. Agora não.
Quem ouve gemidos, batidos de vento, soando orvalho, se desfazendo lá dentro?
Dom Quixote de unha quebrada, cabeleira esvoaçando, descuidado tambor. Logo outro qualquer voltando ao futuro ou de onde quiser, que futuro não há em verso sem rima, vomitado e não parido como se nascer da boca fosse possível em uma sina.
Jogou-se no ar, pegou fios, machucou as mãos, arrebentou telas, todas já pintadas, o grande arista, pelo chão espalhadas. Coloridíssimas, espirrando tinta. Obras pollockianas com redes de linhas coloridos entrelaçados, transparências desviando a atenção para o fundo do quadro. Não podia ver o fundo do fundo, agora podia e não queria, feia cena de gritos e murros.
Monstros criados pelo viés da imaginação o levavam às profundezas desalmadas. Caiu mosca na sopa, entupiu o ralo, a azeitona da empada fez revoada no estômago, olhou para o lado e viu que a tela só falaria com ele se usasse palavras.
Amargou direto, buscou a forma, duas dimensões contidas, abriu a porta, soou sino, bateu na lata, criou tino que se perdeu na escada.
Dormiu no chão, sonhou cavalos montando ventos, cortou as asas, virou galo, quebrou a crista, ficou banguela, sofreu as dores, perdeu os amores, conchinhas emborcadas de nada, ficou absurdo, surtou maluco, saiu da fossa, respirou fundo.
Virou escritor.

domingo, 12 de junho de 2011

Alice... Quem foi que disse?


Alice não era do tipo que aparece, marca presença, pelo contrário, passava despercebida, ausente estando ali o tempo todo. Treino para quando virasse fantasma, ninguém vê, nem ouve, mas está ali. As pessoas comentando, fazendo de conta que ela não escutaria. Só ela sabia que escutava numa considerável distância, uma linguagem bem pouco conhecida e sem significado.
“Como a Alice é boazinha!”, “A Alice é um doce de pessoa”. Pontualmente a velha arrematava: “E é muito prendada.” Essa era a parte mais irritante. Ficava imaginando se dissessem: “A Alice é uma boba, dá palpite até no que não sabe”. A velha diria: “É, mas muito prendada”. Sabe-se lá por que ela fazia uma associação dos infernos, prendada era prenda atada. Ela era uma prenda atada a não sabia o que. Melhor treinar para fantasma. Distanciava-se do mundo brilhante demais, barulhento demais, incompreensível demais.
Será que fantasma, espírito, ou coisa que o valha também ouviria comentários? Os espíritas diziam que sim, mas não importava, ela via fantasmas de vez em quando, assustavam, se acostumou aos poucos, agora passavam e só. Luzes, brilhos, sons.
O que diriam dela? Uma folha morta? Um cogumelo de pernas? Se fosse surda em vida, talvez fosse surda depois da morte também, pelo menos não ouviria comentários nem que era muito prendada. Quais seriam as prendas de um fantasma? Teceria teias voláteis como os pensamentos? Vestidos de gaze tecidos com o orvalho da manhã que viram sonho ao sol? Essas elucubrações não preocupavam Alice, nem as tinha, mas enchiam de dúvidas a cabeça da mãe dela.
Vieram as férias, sabia que eram férias por que entraram no carro e andaram... Andaram... Não chegava nunca e é desassossegado ficar tanto tempo sentada sem uma linha nas mãos, sem espaço. As estradas são barulhentas e desconhecidas, um medo alucinado tomava conta dela obrigando-a a gritar, espernear a ponto de sua mãe prendê-la no banco, ou ampará-la no colo até que dormisse. Chegaram, após muitos cafés e pastéis. Essa era parte boa, ninguém tirava a comida de sua mão, podia brincar com ela jogando no chão e voltar a pegá-la engolindo sofregamente. A mãe olhava para o lado e fazia de conta que não via nada. Ficava mais complicado entender razões, no momento era bom.
Teve certeza que eram férias embora não entendesse o que deixava os pais tão sorridentes se tudo era igual, pelo menos para ela, nem sabia bem o que eram férias, coisa aérea e que não se pode tocar, nem por na boca. As linhas não muito coloridas estariam ao alcance da mão e podia, como sempre, fazer longas e frouxas tranças com elas. Depois a mãe inventava usos secundários como por na cintura ou prender os cabelos. Era quando a velha espiava e dizia: Como Alice é prendada! Não era bom vê-la revirando os olhos enquanto falava, podiam saltar e fugir chão a fora até trombarem com a porta..
Respirou fundo por que o cheiro do ar vinha volitando sal, gostava desse odor ardido embora no início machucasse um pouco. Olhou a casa abrindo primeiro um olho e depois o outro, não dava para fazer tanta coisa de uma só vez, amedrontava. A casa onde estacionaram tinha porta de sorriso e janelas tremendo, o portão grunhia, outro fantasma a enfrentar, até que se acostumasse.
Não saiu no dia seguinte, não podia e não esperavam isso dela. Tudo tem que ser aos poucos, a caixa de Pandora, se aberta abruptamente solta perigosos monstros, mas tem fadas e duendes se nos acostumarmos às frestas. Ela se acostuma aos poucos com tudo, na estrada se anda passo a passo.
Foram à praia, o mar é aquele engolidor terrível que ruge até na calmaria, o pai deu a mão e, lentamente foi aprendendo que não seria engolida de supetão. Cuidado, um pé, depois o outro e o mar se acalma, embala, refresca os temores.
Começou a sair sozinha, as férias criaram essa qualidade, podia ir para onde quisesse e não a barravam, foi assim...
O rapazinho estava sentado navegando o mar com os olhos. Não mexia nem um dedo, por isso Alice não teve medo, ia caminhando sem pressa e tiquetaqueou vontade de compartilhar a silenciosa espera dele. Esperaria a coragem chegar como ela esperava ou estava se acostumando com o mar? Não tinha respostas por não ter perguntas. Tampouco sabia se podia sentar ao lado dele ajudando na espera, então sentou. O rapazinho não se incomodou, não disse o nome, nem perguntou nada, a velha estava longe, sem observações sobre como Alice era prendada. Provavelmente o jovem não se encantaria com isso, tornou-o mais próximo.
Ia todas as tardes sentar-se ao lado dele, na convivência calada de navegar o mar, acostumar-se com a imensidão do céu, sabiam as mesmas coisas e por isso as palavras eram confetes desnecessários. No silêncio não há medo, o sorriso do rapaz dava certeza de que ele também sabia disso. Com ele aprendeu a defender-se do sol: a mão em aba olhando as águas sem que o movimento a perturbasse.
Nunca estivera tão confortavelmente próxima de alguém, alguma parte adormecida de sua alma acordou e ela balbuciou a primeira palavra. Já ouvira tantas vezes, mas ninguém entenderia se tentasse dizê-la: mar. Todas as formas muito grandes passaram a ser mar. Ninguém compreendeu de onde saíra, mas aprenderam que era enorme. O que parecia grande diminuiu e seu mundo se ampliou com isso.
Logo aprendeu outras coisas no silêncio tão fácil de se aprender. Um estranho prazer no peito que fazia sorrir. O rapazinho sorria e ela também. Segredos foram ditos alheios de sons. O primeiro amor desabrochou na areia desenhada pelas águas em ondas suaves.
No recôndito do peito, sem que nem por que uma vez desnecessário, bateu emoção que cavalgou sentimento. Os dias se tornaram um só sentada ao lado daquele que tomara o espaço de todos em sua vida. Quando o sol procurava casaco para a brisa da noite não se acomodar nos ombros, ela se despedia gentilmente: mar e ia embora navegando por dentro na grande descoberta.
Chegou à casa e assustou-se com os barulhos e movimentos, mexiam em tudo, trouxeram para o meio da sala as mesmas caixas de guardar que antes tinham desguardado. No dia seguinte, entre fúria e arrastos embarcaram no carro. Andaram... Andaram. Desta vez os pastéis não aliviaram a cansativa e desnorteante prisão, de alguma forma sabia que o menino não se afastaria do mar para segui-la. Como poderia encontrá-lo depois que o caminho do mar se tornasse desconhecido?
Esperou nos dias, sonhou nas noites, mas ele não veio lhe dizer que esperava pelo encontro. Se esquece tudo, Alice também esqueceu. Novamente houve aquela quebra na calmaria conhecida e novamente, roupas e tralhas foram escondidas nas malas. Novamente veio a estrada longa, cheia de pastéis. Deu-se conta que iam ao mar, ficou quieta, esperou. Voltaria ao encontro marcado de todos os dias, nem sequer titubeou na dúvida que ele não estaria sentado a navegar o mar. Era o destino do rapaz e ninguém foge ao seu destino.
Não esperou por nada, fugiu com força da mão que a segurava, correu para a praia, seu pensamente não se esquecer do lugar e nem de como chegar. Lá estava ele sorrindo, navegando sem barco, sonhando estrelas, a mão resguardando os olhos da luz e do rocio. Tem momentos que cumprimentos se tornam vazios de sentido, sabemos que não houve ausência, apenas saudade.
Queria ficar ali, sentada ao lado do rapaz, cuidando que a água não os levasse para aquele ponto onde tudo deixa de ser visto. Teve coragem mar e passou o braço pelas costas dele que não se furtou. A decisão foi tomada sem pensar sobre ela, pensamento não existem quando a gente quer de verdade. Como faria para permanecer também não se questionou, ficaria e era assim.
Os pais se preocuparam, foi um corre-corre e vizinhos ajudando. Caíra a noite e Alice com seu medo do escuro não aparecia. Espanto, grave preocupação. Foi Gabriel, o velho pescador que conhecia aquelas paragens desde garoto que encontrou. Como contar? Melhor no ligeirão antes das lágrimas fazerem rios na sua cara.
- Ela está lá... Fria e sorrindo, abraçada na estátua do menino do mar.

domingo, 5 de junho de 2011

CACHORRADA




Tudo bagunçado outra vez! É entrar em casa sabendo que sapatos estarão rodopiando pela sala, alguma coisa roída na cozinha e cheiro de sono no ar. Dá um cansaço!
Meus ruídos despertam sono pesado e logo verei o olhar imperativo de “não me machuque”. Impossível resistir apesar de saber que é errado ceder, o chefe da matilha deve ser eu. Logo em seguida sentirei a onda de carinho, as palavras que mal compreendo resumidas a sons repetitivos. Já estou acostumada, fui eu que escolhi, sem possibilidade de reclamar. Ainda sou dos antigamente quando se era fiel à palavra empenhada, à cara com vergonha, a coca-cola de garrafa, não descartável. Então...

O que se faz de noite? Ela é tão longa, se estende pelos trilhos das horas sem estação de chegada antes do amanhecer. Inverter horários... Ora bolas! Quem liga? Uns são do dia, outros são da noite, isto é estatístico, eu li num pedaço de revista qualquer na sala de um psiquiatra qualquer. Tudo é um qualquer na minha vida, não tem muita diferença uma coisa da outra. Momentos.
Esperar... Odeio esperar, as revistas são sempre antigas e eu tenho um bolo indigesto na barriga que me morde o tempo todo. De noite tenho que esperar o dia de dormir chegar. Dormir... Nem sei se gosto. Meu notebook está à disposição, outro tipo de viagem, um pouco menos avassaladora, mas ainda assim... O tempo passa, passa sem passar nunca, a vontade de sair pelas ruas sem rumo e com rumo certo, é tudo que preciso segurar. A ansiedade que têm minhas pernas para andar e agora estou preso aqui neste apartamento sem portas. Estou sozinho na noite desta casa que finjo que conheço e com estes cheiros de gente sadia que me persegue sem trégua.
Sou um peixe fora d’água desesperado para submergir no mundo que me domina. Telefone... Telefone também ajuda. Não me preocupo se ligar para a Colômbia ou o Marrocos é caro ou não, minha mãe paga tudo que preciso, é o dever dela que me fez inválido e deformado. Ela fez e eu pago o pato. Que sacanagem!
Atirar-me no sofá ou da sacada é tudo a mesma coisa. Eu jurei não me jogar mais, isso foi há 3 meses atrás, já passou a validade. No supermercado os produtos perdem a validade, estou exposto para compra e venda, também perco a validade que não me vale de nada.
Um intruso tilinta meus pensamentos... Vieste novamente me visitar? Como és lindo! Contigo tudo será mais fácil e ter-te nos braços me fará desejar viver.
Ai, que medo. Me desentenderás como todo mundo? Exigirás que seja medíocre e vulgar? Não, claro que não. És tão jovem, te torcerei e retorcerei até que desta vez não reste pedra sobre pedra de ti e serás assim completamente meu. O amor que nunca tive. Amarás o que eu amo e nunca mais me sentirei perdido. Se doerá? Talvez um pouco. Eu me torço todos os dias, acabou que acostumei. Fico triste? Fluoxetina. Eufórico? Lítio. Agressivo? Qual qualquer coisa as pessoas chamam de agressividade, mas eu li que é muito melhor esvaziar. Quebrar uma cadeira tirando lascas da parede é pouco para o vulcão que vez em quando sempre entra em erupção dentro de mim. Casa sem cadeiras é charme, meus amigos adoram as almofadas pelo chão e agora o vizinho não tem barulho para encher os ouvidos de minha avó quando ela vem. E vem demais, no controle o diabo da velha, traz dinheiro então aguento. Sou um artista, é difícil ganhar. O mundo não está pronto para minha arte e tenho pouco tempo de realizá-la, tantas coisas para fazer... Banho, escovação de dentes, roupas para levar na lavanderia, comida pronta boa, não tem em qualquer lugar. A vida às vezes é um estorvo.
Se eu vou te machucar? Ora... Que besteira, claro que não! Eu te amo. Vamos brigar de vez em quando. Normal, né? Fico brabo, muito brabo, mas sempre com razão... Se não me deixam dormir, se me obrigam a comer, se minhas necessidades ficam à deriva. Só preciso de amor o resto é tudo invencionice. Confia em mim, eu te amo. Amo, amo, amo. Transbordo de amor por ti. Claro que já amei antes, mas nunca tinha ficado noivo, é a primeira vez. Te liguei por que tua voz é minha seiva, meu pão, meu mel... Tudo de bom que eu possa imaginar. Doce bala de coco. Sei que é tua primeira vez, serei cuidadoso, te ensinarei com paciência, conheço minhas responsabilidades por um amor tão puro. Uma pequena dor é tempero delicioso, aos poucos descobrirás o prazer da dor. No sexo deslumbrante que te apresentarei, ela te mostrará toda a sua majestade. Acima de tudo confia em mim, sou vivido. Se soubesses quantas rodas já enfrentei! Saí ileso, juro. Sempre alguma cicatriz resta. Normal, né?
Me dá uma raiva esta distância! Esbofetearei a puta da minha mãe que me obrigou a voltar, se não fosse isso estaríamos enroscadinhos. Espera, está entrando uma ligação.
Oi, amor! Claro que não te esqueci, sabes que sempre terás meu abraço para ti, vazio de ti. Volto logo, semana que vem. Só o tempo de visitar meu pai, faz 5 anos que não o vejo. Talvez não vá, me disseram que está numa profunda com a cocaína, não posso me expor. Não, não usei, eu juro. Morrendo de saudades! Olha, entrou outra ligação. Beijos, te amo.
Voltei. Meus créditos estão no fim, amanhã aviso minha mãe e poderemos falar de novo, nunca é o suficiente. Sim, só tenho a ti. Que desconfiança boba. Repito: tens que confiar em mim, és meu e sou teu. Que pergunta é essa? Nãããooo! Claro que nunca usei drogas, são o mal em vida. Beijos e beijos.
O dia amanhece, comerei alguma coisa para dormir. Não posso fazer barulho algum. De que jeito se vai à cozinha sem fazer barulho? Impossível! Ela já dormiu bastante, não fará mal dar uma acordada, afinal é do dia. Gente do dia sim faz barulho demais, incomoda meu sono, não há respeito neste mundo. Será que vai me despachar? Não incomodo nada. Esses meus pensamentos negativos, não darei ouvidos, estou bem, muito bem.

Sempre me preparo para encontrar as coisas como não eram antes dele vir, desorganizadas e sujas. Fuxica nos vasos, come as plantas... O que fui inventar? E lá vem ele abando o rabo, se alisando em minhas pernas, latindo alegremente. Como se pode ver emoções no latido de um cachorro. Eu o trouxe, perturba, mas aprendi a amá-lo até que cresça e se acalme. Não demora muito, quem demora e às vezes não cresce nunca é gente.

CANSAÇO




O amor está cansado
vivem nele desastres aéreos
mortes sem fim de guerras apátridas
holocausto e hibernações.
está como fruta madura
quando cai do pé, morre.
está no fim de seus dias
Os quatro cavalos, há milhares de anos
Batem cascos.
Não vicejam mais os campos
Os rios morrem de sede
Os mares cospem seu desespero e sua solidão.
As terras se contorcem em desertos
igual meu coração
Porque, cheio de medo e pavor
o amor fugiu do mundo.
Buscou, em todas galáxias
a salvação
O universo não tem piedade.
Porque a teria, se na Terra seu fruto apodrece?
Porque teria se exauriu seu sumo até o fim?
Houve vozes
Que, ainda hoje, ecoam no Infinito
alguns a regurgitam
como se pasto fosse
Não quero regurgitar
quero voltar no tempo
mesmo que tenha que vomitar
a dor que causei
Olho ainda o Infinito
e peço clemência
por tanto que me doei à dor
que me circundava.
Vendida, aflita por preço tão vil
eu te peço Amor,
não permita que eu também te abandone.
O amor clama por integridade.

Vana Comissoli

segunda-feira, 30 de maio de 2011

SE SOUBESSES

Quanto amor tenho guardado
num cofre chaveado
palavras doces
quentes gestos
esperando...
já meio desarrumados
um pouco mofados
antigos
silenciados.

Se soubesses como espero
vê-los ao sol
ressuscitados
brilhar no escuro da cama
chamar em gemidos teu nome
trocar beijos
ofertar abraços
do esperar já cansados

Se soubesses que longas horas
intermináveis minutos
pousam sobre o telefone calado

Se pudesses ver
meu olhar perdido
de esperança adormecido
Se pudesses sentir minhas mãos vazias
meu peito esfomeado
meu ventre manietado

Talvez soubesses
quanto tempo tardasses.
Vana Comissoli

domingo, 29 de maio de 2011

SORTE GRANDE

Uma em um milhão!
Sabe aquilo que tem tudo pra dar errado, aquele premio que voce nunca vai ganhar, aquela oportunidade que não vai aparecer, a viagem que voce nao vai realizar, o cara certo que você não vai conhecer?
Pois é, todo mundo tem uma chance de ser exatamente o oposto disso tudo que descrevi. E outras coisinhas mais que ninguém acredita que possa acontecer com sua vida.
De repente você pra ajudar o ceguinho compra o bilhete premiado da loteria.
De repente você esta na hora certa e lugar certo.
De repente a sua frase foi a mais criativa no concurso da Maggi e vc ate o fim do mes estará embarcando para Bora-Bora. (E ainda ganha um ano de supermercado pago!) De repente o cara da sua vida eh exatamente o piloto que vai te levar ate a magnífica Polinésia Francesa. (Ah!¬ além do homem certo você ganha um fetiche ambulante, afinal nada como um piloto).
A probabilidade de tudo se encaixar e pequena, mas pode acontecer.
Necessita um mínimo esforço da parte interessada e um punhado de sorte!
Tá, um caminhão de sorte!
Mas o que acontece na real?! Você não vai aquele evento porque esta cansada, você não compra o bilhete porque não tinha trocado, não manda três códigos de barras com sua frase porque acha que todo concurso é marmelada... Nem preciso falar do piloto, afinal você nem embarcou.

Juliana Comissoli

RESVALANDO NAS PONTES




Saiu do buraco de cobras pintassilgando a terra de vermelho. Um vermelho velho e escuro igual aos buracos da saudade que marcavam seus braços gangrenados. Já gritara tanto por socorro que agora demorava a fazer eco dentro do coração que nem gemeu quando viu a luz do lá fora. Era pardacenta e tênue, mais uma teia de aranha que rompe fácil na ponta dos dedos, qualquer ai desfaria tudo e novo buraco com as cobras lúgubres de estranhos e sarcásticos risos se abriria à sua frente. Não haveria ponte que pudesse atravessar. Bastava cair e uma garganta famélica o engoliria sem opção de vomitar, quando muito o regurgitaria para voltar a mastigar no furor da fome insaciável.
Andava na ponta dos pés dos sentimentos atrevidos e permanentes, a ingenuidade ou esperteza demais, o faziam não calar os arroubos, mais e mais, assim permanecia vivo. Fingia aqui e ali que era normal apesar de acordar quando a tarde ia a meio. Fazia de conta que trabalhava enquanto emails desesperados eram enviados de todas as partes do mundo circular onde andava pedindo dinheiro que acabara anteontem. Urgência de tudo e incompreensão de todos. Como alguém poderia entender a alma que buscava amplos campos chafurdando em atoleiros pegajosos, infinitamente cinzentos? De vez em quando uma luz, fogo fátuo a morrer logo ali.
Julgava que caminhava andando em círculos concêntricos cada vez mais apertados, como anda o cachorro atrás do rabo, parte deliciosa de si mesmo. As agulhas poderosas poderiam tirá-lo deste andar cuidadoso onde o medo acompanhava a gargalhada que deveria ser baixa e controlada para pensarem que ria de uma piada vulgar e não da notória falsidade que trazia no bolso. “Você acreditou no que eu disse? É bom, nunca se deve acreditar num homem que não mente”. E ia assim mentindo de grão em grão para encher o próprio papo, o olhar crente do outro a fazê-lo acreditar que era de verdade e não feito de confete e batom que manchavam a camisa e outros escorriam mofados na chuva ácida de suas lágrimas que pensava não existirem mais.
Estava na paz. O fio da navalha de seus sapatos não o incomodava tanto e enchia a boca de comprimidos que engasgavam, mas desciam arranhando a garganta, manietando os buracos cheios de agulhas espetando seu sangue. A crueza era assim mesmo, podia jurar que se sentia bem e lentamente os furos nos braços só deixavam manchas escuras que se pode esconder. Marca indelével do passado que não passa nunca.
Fazia grandes programações onde até caminhadas matinais existiam, sabendo que não existiriam nunca. As saídas noturnas estavam dentro do baú que não abriria. Aqui fora era atravancado e estrategicamente contornado, indo pelos canteiros de flores em vez de caminhar entre o mato que se acumulava nas bordas. Lá dentro acoitavam os insetos gigantes com cabeças humanas espreitando nas esquinas para levá-lo prisioneiro eterno dos buracos fatais.
Ia cobrejando a esmo sem definir o caminho, se mimetizando conforme o interlocutor. Alguns tinham cores surpreendentemente belas e outros, apesar do ouro fosco e por isso mesmo, o encantavam ainda mais. Estava sempre há alguns centímetros do abismo onde os sentimentos seduziam e perdia-se neles num contato atroado, os momentos sem eles se tornavam vazios e descoloridos. Ficava um sapo sem príncipe dentro, coaxar não era seu forte e arrancou o piercing da língua para ver se aprendia, um frio na espinha correu e puxou num safanão para enxergar o sangue que o seduzia ao infinito. Imediatamente viu seus parceiros de cama com os braços lacerados pelas lâminas que produziam os riscos vermelhos que levavam a gritos de orgasmo inigualável.
Cada um é o que é, pensava em momentos de lucidez, se aceitando tal qual era: Um estorvo permanente a si mesmo e não tinha coragem de matar. Deste jeito fugia das noites de becos e ruelas, de festas selvagens cheias de suores e fantasias seminuas por onde andara, lhe dando cada vez mais a sensação que não estava em lugar algum.
Em torno os olhares eram de alívio, embora sempre atentos aos seus gestos como se escravo fosse da vontade dos demais. Era uma estupidez satisfazer aos outros, mas tinham lhe dito que seria o paraíso viver em paz das alfinetadas da mente. Pelo menos para provar que estavam todos errados, se impôs experimentar este novo tipo de tortura, tão acostumado a elas que não deveria ser muito diferente e uma pela outra quem sabe pudesse dormir.
Foi quando o menino desprevenido e puro apareceu vestido de comum lugar virtual. Vinha com aquele sorriso que só se encontra nas crianças bem nascidas de saúde mental, acarinhadas por outra coisa que não a febre que seu pai lhe ofertou numa noite de loucura branca em forma de pó enfileirado.
Poderia se apaixonar por esta visão. Se esforçou bastante, conseguindo afinal encher todos os minutos com ela até que a ansiedade voltou a entupir suas veias de adrenalinemia, deixando-o de sorriso espetado com olhos de segundeiro de relógio.
O menino estava tão distante! Precisava superar várias dificuldades para enraizar este encontro útil e derradeiro em sua vida até então mesquinha, mas daqui para frente gloriosa. Era o que seus instintos metafísicos diziam em cochichados altos brados. O desgraçado do mundo muito caro de atravessar, alguma coisa milagrosa precisava acontecer e o tarô lhe dizia que sim, afinal o definitivo tinha chegado.
Tornou-se urgente e suplicativo aos ouvidos possíveis de levá-lo para tão longe num passe de mágica de cartão de crédito. A interdição imposta por seus atos enlouquecidos o tinha deixado incomensuravelmente longe de qualquer bandeira endinheirada de caixa eletrônico. Foi assim que os dias retornaram ao inferno do “me dá e quero”, derrubando até a muralha da China. Como esta muralha era feita de vime frouxo de mãe quase tão quanto, pronta para ser derrubada por lobo vagabundo. Logo conseguiu seu intento, mas o miserável cartão estava num fundo sem fundo algum e nova peleja se impôs sem solução a menos que...
Remorso e olhar o passado não são coisas que toque a vida para frente, quem quer se estraçalhar faz isso de qualquer maneira, com a ajuda dele ou sem. Tinha sido assim com ele por que outros também não poderiam enfrentar a onça com vara curtíssima? Se há dor, isso não significava nada diante do arsenal bélico do aprendizado. Era por uma causa acima de todas as causas, conforme uma estrela cadente lhe tinha falado sobre este amor que redimia, afinal ali, a um vôo. Precisava alguém ou alguma coisa ser sacrificada, como os sacrifícios eram oferecidos ao deus furioso que aplacava as ondas enormes e engolidoras em priscas eras. O que não acontece se faz acontecer. “Vamos embora que esperar não é saber”.
No dia seguinte estavam na frente do dragão que cuspia fogo lacerante pelas mãos, poros, boca e principalmente pelas intenções reais e executadas. No peito havia um medo, mas um medo banal de pessoas vividas para dentro, com suas próprias agulhadas na iminência de agulhar outra pessoa pelo nariz ou pelas veias, tanto faz.
O Senhor dominante da área cocainômana fazia de conta que era íntimo, isso dá uma segurança bastarda muito elegante e tão falsa quanto um brilhante na bijuteria da atriz. Logo os acertos estavam feitos sem perceber que o buraco desta vez não tinha cobras vulgares, eram todas najas e víboras da melhor espécie, daquele tipo que espreitam antes do bote arguto e envenenador para todo o sempre.
Quem poderá desconfiar de uma camaradagem entre mãe e filho voejando de uma cidade para outra, indo se refrescar no Mediterrâneo como prêmio de férias por amor indissolúvel que vem do ventre e alimenta até a morte? Na bagagem há de ter alguns pertences uma vez que sem roupas íntimas ninguém pode viajar. No meio delas, pacotes muito bem embalados, tão bem que nem um odor vicioso e fugaz haveria de escapar. Não é possível que os cachorros sejam tão cretinos que vão se deixar engambelar por esta quirera, tendo a bolsa uma lingüiça de primeira qualidade, daquelas que, a quilômetros, qualquer cão deseja ardentemente.
Estes Cérberos do inferno!
Logo homens muito grandes, parece até que suas cabeças batem no teto, ou cresceram de repente diante dos olhos atônitos. Também muito fortes, ou fortificados por insígnias federais imensas e duras algemando a consciência dos pulsos.
Grades não são coisas boas de nos defenderem dos buracos e atrás delas se chora um choro longínquo de quem este buraco faltava conhecer.

domingo, 22 de maio de 2011

HISTÓRIA SEM FADAS

Eram 6 horas da tarde quando Amarelo acordou. Tivera uma boa noite invertida, era assim desde que começaram a reforma da Praça da República no centro do centro de São Paulo. Os homi não incomodavam mais e o barulho diurno das máquinas e do trânsito era cantiga de ninar para seus ouvidos zoados. Tinha que descolar algum para comer, a larica estava das pesadas, estava na urgência, sem tempo de encontrar uma velhinha distraída da bolsa para fazer uma parceria imposta de grana. O mais legal seria ir direto para a pequena rua que serpenteava em torno do Copam, aquele prédio batuta que aparece todas as manhãs nas notícias de trânsito encrencado. Sabia das coisas porque sempre parava diante da vitrine 24 horas de TV quando ia dormir. Bem certinho como quem bate ponto depois de descer na estação República do metrô apinhado de gente. São Paulo é assim, quando uns dormem, outros acordam. Não sossega esta cidade?
A turma do comércio diurno estava saindo da labuta, os do turno da noite prontos para entrar em ação. Logo encontrou o Zé do Pinho encapuzado como ela, a cabeça enfiada até os olhos no moletom que um dia foi preto e agora era meio “onde está a cor”. Chapéu não era uma vagabunda qualquer, dava duro, antes de fumar a primeira pedra vendia umas quatro ou cinco, era o trato a cada R$25,00 ganhava uma. Tinha que se puxar, a concorrência era braba. Bem que poderia trabalhar no dia era mais calmo, mas sabe como é, uns são do dia e outros são da noite. O Professor que sabia das coisas tinha ensinado isso e entendia da tal Psicologia. Quem vai duvidar, ele viera da Vieira Couto, tinha casa e tudo, um estudado.
Chapéu não sabia o que estava escrito nas estrela para ela, ora quem vai ler estrelas? Só os babacas que ficam caídos de boca prá cima olhando o céu. Esses eram da pesada mesmo e até espumavam pela boca. Ela não, era sabida e não atolava demais na pedra. Tinha que ter olho vivo para ver se os homi não tinham decidido dar uma de moral para repórter que gosta de ver o nome no jornal nacional. De vez em quando acontecia, ela até já tinha sido atriz, se reconheceu pelo capuz amarelo, ainda bem que a cara não apareceu, era de menor e não gostava da FEBEM. Os camaradas tinham contado que lá era foda, se apanhava igual cachorro sarnento.
Pois é... Sem saber ler estrelas e muito menos o que estava escrito no Tarô que nunca tinha ouvido falar, ela não imaginava que este dia era marcado pelo diabo. Este conhecia bastante bem, digamos que fosse seu amigo íntimo. Pelo menos já se deitaram juntos umas 30 vezes, era dono do pedaço o Diabo Mico, foi com ele que perdeu os tampos aos 13 anos. Isso é apenas detalhe, tampo é para ser perdido mesmo. Refri a gente não tem que abrir para tomar o gostoso? Burrice esperar, a vida é curta. Nesta zona ela é bem curta, ou se morre embaixo de carro vendo preto Audi onde é apenas Fiat velho, ou se morre de tiro perdido por polícia zoado, ou se morre de morte morrida de tanto crack na cabeça. Já estava uma velha de 16 anos, daqui a pouco começava a contar ao contrário e a vida ia encurtando, mais fácil assim e a gente ia pensando que vivia bem mais.
Depois de pegar a trempa procurou a clientela segura, os de fé que eram fáceis e sempre tinham dinheiro, o cara do mercadinho, a guria do sebo e outros deste naipe burguês. Não sabia o que era burguês, mas diziam que eram os bacanas que davam um jeito de ficar no invisível e por a turma na cadeia de vez em quando assim limpavam a própria barra. Isso era chato porque para sair na boa tinha que dar para os guardas e eles reclamavam do cheiro. Ora, estavam pensando que banho era fácil? Tinha que ir ao albergue, coisa filha da puta de chata, eles ficavam na fiscalização para ver se não tinha pedra escondida e quem pode dormir direito de cara limpa deste jeito? Só otário.
O Lobo vinha se balançando todo com aquele ar de Bredi Piti. Adorava o Bredi, tinha visto um filme inteiro onde o cara aparecia peladão o que lhe valeu belas e boas horas de suruba com os três moleques mais legais do pedaço. Dava até para agüentar rodada esticada, mas a pedra rolou solta e desabou. No dia seguinte procurou os malandros, eles estavam em outra e não deu para repetir a dose. Melhor, esse negócio de sexo tinha perdido a graça, a pedra fica com tudo, até a com coceira no meio das pernas.
Pois é, lá vinha o Lobo e ela se ouriçou toda, diziam que o cara era mau e ela estava louca para ver a maldade. Ouvira que ele comia pesado e às vezes até queria comer a avó da gente. Não dava para arriscar porque nem sabia onde andava a velha, nunca tinha visto as fuças dela.
Resolveu parar na lanchonete e choramingar um sanduba, o português quando estava de bom humor e tinha comido bem a mulher de noite, dava um bom demais, com mortadela e tudo. Até passava manteiga. Era um desses dias e se fartou, a sorte é que o estômago não agüentava muito e era uma pena perder iguaria jogando revolta no chão da rua. Ficou ali no hora veja até sentir que a mortadela caía bem e a disposição ficava punck, legal para enfrentar o lobo.
A floresta de concreto estava naquela movimentação, era bicho de todo lado, alguns veados balouçantes, várias hienas, muitas onça tigradas saindo da Boca do Lixo e toneladas de cachorros amestrados. Flores de plástico, coloridas e aveludadas, recheadas de pó se apertavam na mesa do camelô, sempre desejara uma daquelas rosas fosforescentes, ia ficar bem legal enfeitar o chapéu amarelo, a grana nunca chegava nela. Um dia... Quem sabe?
Nem percebera que o relógio batia nas 7 da manhã, seu “dia” passara voando, nem queimara tanta pedra e estava legal.
Atravessou a São João no acostumado da corrida, o Lobo resolvera se movimentar e já descia a avenida. Será que daria um giro pela Vinte e Cinco? Fazer o que? Lá tinha guarda de todo lado, de olho nos rapa para avisar os camelôs sem licença. Os pobres diabos ganhavam uma merreca como polícia e eram obrigados a um trabalhinho extra. Morria de medo, ao mesmo tempo os revólveres presos à cintura a excitavam, devia dar um barato transar com o cano deles, até arrepiou só de pensar.
Se chegou no Lobo como quem não quer nada, perguntou o endereço de uma rua qualquer, ele era entendido da floresta. Foi um cá lá e se amigaram bem legal, o cara estava na falta e topou dar um trato nela, até prá cama de verdade levou a mina.
Chapéu entrou meio desconfiada no quarto, esse negócio de 4 paredes era meio chato porque não tinha para onde fugir se pintasse sujeira, mas o Lobo... Valia a pena o risco. Tomou banho, dizem que perfumosa é mais chamativo e vá que o cara fosse do tipo tarado e enfiasse o nariz lá dentro. Uma tara é bom, os caras da crokô eram bate e volta e não se pode exigir na hora de ganhar uma pedra pelo serviço. Pensando nisso esfregou o sabão com vontade na pechereca que reluziu.
Foi toda se fazendo para a cama onde o Lobo já estava a postos e viu que estava completamente a postos, se assustou um pouco, nunca tinha visto uma disposição daquele tamanho. Tudo bem, a gente tá na roda e tem que deixar rolar.
O cara começou manso, até desanuviou a cabeça e a fumaça foi embora. Ficou bom demais embora batesse doído, tá na chuva é prá se molhar, pensou quando deu o primeiro grito.O Lobo riu alto e disse um monte de palavrão que nem se lembra quais foram, só ficou o “tu ainda não viu nada”. Era nordestino, o desgraçado. Tinha vindo atrás de trabalho e pegou pesado na construção ficando com uns braços que eram umas toras, ou tomava bola, vá lá saber. Virar ela de costas era um assopro e foi assim que Chapéu começou a aprender a ler estrelas. Já tinha feito este negócio de vira-vira, mas não com alguém tão apessoado e sem planejamento.
As tripas se revoltaram porque o Lobo dançava forró em seu corpo quase desfalecido. Ouvia os gritos de “caga, caga” e o riso subindo cada vez mais alto, “quero gozar, vamo lá vagabunda, “não te faz”. Antes de se arriar toda lembrou que tinha estado ali há muito tempo e que o porteiro era o Caçador Verde, não vacilou, berrou por ele. Na lembrança, a voz de Margarida retiniu: O Caçador é de fé, salva a gente se a gente gritar por socorrimento.
A porta abriu num baque se estonteando no chão e nem deu tempo de ver direito o cassetete improvisado abrir a cabeça do homem que brochou na hora com um mundéu de sangue esguichando nas costas dela.
Estrebuchada na cama do Clínicas contava a história toda para o polícia, nem quis saber se o Lobo estava morto ou estrabuchado, balbuciava entremeando cada frase com a lembrança desconexa:
- Moço, salva a minha avozinha que esta ela não aguenta.

sábado, 30 de abril de 2011

A ESMO

Todo mundo tem um mau dia, é o que ouço nas línguas falazes, ninguém sabe o que é um dia escabroso de verdade. Saberão.
Levantei com a cabeça explodindo, se é que levantei de uma noite insone. Melhor assim, pelo menos os pesadelos não me pegariam desarmado no sono dos justos porque sou justo, aos bons o bem, aos maus o castigo a ferro e fogo. E a vara desce no meu lombo depois de ter derramado o único café na toalha de papel. Minha mãe era dessas imbecis que mesmo não tendo toalha alguma, botava folhas de jornal recortadas com corações vazados e chamava de toalha. Sei que na casa dela tinha estas frescuras, depois que casou com o cretino do meu pai de quem nem vi a cor do cabelo já que se escafedeu assim que a barriga apontou.
A barra pesa sozinha com um berrão nos braços, de fome, mas berra do mesmo jeito e o estrondo irrita. Posso compreender porque já apertei um travesseiro na cara de meu irmão que botou o pé na vida chorando que nem eu. Gritou mais o desgraçado e por isso desisti do aperto, naquela época ainda não tinha o conhecimento que tenho hoje. Bobalhão! Seria uma sorte para ele ter se finado antes das surras intermináveis e da fome sem fim, do buraco que a gente morava e não via hora de se mandar.
Se eu tivesse esta história seria bem legal, tenho certeza que os cretinos de plantão que andam à solta por aí ficariam satisfeitos e até chorariam uma ou duas lágrimas de pedra. “Uma vítima da sociedade”, adoro essa frase, cairia como uma luva de pelica, daquelas macias e gostosas. Nem sempre se tem esta sorte, há coisas que não possuem a explicação simplista que as pessoas adoram e se satisfazem. Mingau podre comido pelas beiras, no microondas fica frio no meio, era só esquentar nele. To falando que tem burro prá tudo. É difícil ser diferente, é dureza ser lúcido, depois o cara fica doido e acham ruim.
Não sei muito bem como fazer a coisa direito, não pode ter erro e o final deve ser feliz. Eu mereço que seja, a tarefa que Deus me deu não é mole, mereço as hosanas do dever cumprido. Quem mais Ele escolheria? Poucos, muito poucos são os que Ele pode confiar integralmente, bons o bastante para obedecê-Lo sem covardia. Devo ficar lisonjeado com isso, mais ainda, gratificado. Eu, o Escolhido. Me sacrificarei pela humanidade, embora ela não mereça. Ele sabe das coisas, deve estar consciente que sou o indicado para este trabalho, sou o Jesus desses tempos de perdição. Tempos de Humanidade desconexa e assassina do verdadeiro caminho do Senhor.
Sou um cara de boa aparência, bonitão, diria, ninguém deixará de abrir as portas. Ingênuos, ridículos! Não adianta ficar preso no que eles são, isso já sei desde que me conheço por gente, o negócio é resolver, uma pequena parte, mas resolver. Uma lição a rigor pode despertá-los, tem que sacudir alguma coisa, impossível que não. Já estou escapando de novo. Divergindo, diriam e me chamariam de louco por isso, não sei me objetivar. Quanto já ouvi! Nada de dar pano prá manga, Alberto. Aos planos... Aos planos.
O grande problema será entrar. Jesus entrando na cidade e as pessoas abanando folhas de ramos... “Sou a Verdade e a Vida...” Conseguirei, também trago a mensagem, a minha é de alerta, Sodoma e Gomorra se aproximam do fim, acautelai vos! Será um espetáculo, se eu tivesse chance de chamar os repórteres, mas posso por tudo a perder, farei no silêncio do sacrifício.
Entro procurando informação, ninguém me negará, trarei a chama nos olhos, todos se curvarão. Nada de dúvidas ou temores. Aonde levarei as ferramentas? Numa maleta dá muito na vista, vão querer me interrogar. Guardas, vigilantes... Não posso me expor. Sou cuidadoso, meticuloso... Quantas lacunas! Planejar não é fácil. A roupa... preciso escolher a melhor, não, uma bem comum é o certo, embora eu ache que o ideal seria terno. Preto, nele apareceria meu sacrifício. Acho que na roupa clara, aparece mais. Claro! Experimentar, este é X da questão. Pesquisa de mercado. Derramo catchup na camiseta e vejo o resultado, não faz que manche, será seu último uso. Onde pus a planta? Que distraído. Dizem que sou tenso. Imagina... sou distraído, desligado das quireras do dia a dia. Que me importa se enchem a cara de cocaína? Que assaltam e se matam nas estradas? Eu não dirijo. Mas um dia o castigo vem, ah, se vem.
Preciso pensar no plano.Como sou bom nisso, nem sabia que era, eu não me valorizava. Ninguém me valorizava. Imbecis, vou mostrar para vocês desta vez. Vamos ver quem é o burro, o estranho. Jesus era estranho, falava coisas jamais ouvidas. Os santos sempre são um pouco diferentes da boiada. Quem não sabe disso? O pior cego é aquele que não quer ver.
Já estou fugindo do assunto principal. A roupa está resolvida: calça jeans, camiseta branca. Carrego tudo numa mochila, todo mundo usa mochila. Digo que quero conhecer o lugar para matricular meu filho. Ah, ah, ah... Essa é boa! Eu com filho. Imagina se traria um anjinho para sofrer neste mundo desgarrado. Felizmente a Hora, está soando e logo Ele volta e acaba com tudo. Vamos ver quem tem razão. Pensei em todos os detalhes? Acho que sim, melhor escrever para não escapar nada, estou tão empolgado que posso passar batido por algum ponto nevrálgico.
Os preparativos estão todos prontos, estes 3 dias que faltam se arrastarão. Vou jogar uma bola, tomar um chopp, sentirei saudades dessas coisas. Não posso pensar em mim, é momento de doação, grandiosa, soberba, magnífica. Onde jogarei um futebol? Ninguém me aceita no time, nunca mostrei minha capacidade total, perna de pau, dizem... Vou num clube qualquer, onde não me conheçam, até fica melhor, não verão minha expectativa, claro que aparecerá nos olhos e estarei inquieto. Olho para o chão e faço cara de bobo. Eles adoram alguém desse tipo para achincalhar.
Que ansiedade! Normal, é normal. Não fica ouvindo médico de doidos dizendo que és um deles. Desgraçados, quase que minha mãe acreditou e me trancou numa clínica. Tive que dar um “pára-te quieto” nela, senão obedeceria ao infiel. Que Deus a tenha. Viajou para Curitiba. Vizinhas xeretas, forçam a gente a inventar histórias ridículas. Quem mora em Curitiba? Minha tia que há muitos anos ela não via, saudades, sabe como é.
Este domingo está mais chato do que todos os outros, menos vazio está, os anjos batem asas na sala. É que o relógio não anda, a pilha deve estar velha, estas porcarias que fazem e custa um dinheirão.Se o maligno aparecer para me tentar, não cederei, igual Jesus fez, não esquecerei que descendo Dele. Sou o Deus vivo do século XXI. Nem os vizinhos vêem isso, calmo, dizem que sou, quieto também. Herdou o salário do pai militar, por isso não trabalha, mas lê e escreve o dia todo, cuida do apartamento que tem cheiro de limpeza. Um vizinho dos bons.
Os aromatizantes de ambiente estão caros, mas funcionam bem, encobrem todos os cheiros. Moro sozinho, não preciso me preocupar com estas bobagens de limpa aqui lambe ali e a comida congelada é deliciosa, prática, vai tudo para o lixo depois sem problema nenhum. Talheres descartáveis, guardanapos de papel. A vida moderna simplificou bastante, pelo menos uma coisa boa.
A segunda-feira está chegando. O grande dia. Preciso segurar as mãos que tremem, sou Jesus, Ele não tremeu, pediu que afastassem o cálice, posso tremer um pouco, sei que na hora serei uma rocha. Nem dormi de noite, não tenho cansaço, estou alimentado pelo espírito. Pela Luz.

Foi caminhando calmamente os 3 quilômetros que o afastavam da escola, pela primeira vez cumprimentou as pessoas pelas quais passava. Um sorriso parado nos olhos parados. Algumas se desviaram, talvez sentissem o cheiro de desgraçada frieza que o envolvia.
Entrou de passo firme, sabia o caminho, já treinara várias vezes, o guarda até o cumprimentou, se fez de surdo, esgotara sua cota de gentilezas. A secretária atendeu e ouviu atentamente, nem percebeu que tirava a mochila das costas e abria o zíper. Prontificou-se facilmente a levá-lo numa visita às salas de aula. As crianças estão no recreio? Não, ainda estão na classe é hora da merenda. Talvez tenha pensado que seus cálculos estavam perfeitos. Tudo estava perfeito. Talvez tenha rezado, ou nem precisasse disso, devia sentir a Força na mão, dura e fria. Os dedos brancos do aperto, a ânsia de não falhar, não podia se preocupar em olhar rostos, são todos iguais, não seria ele a escolher, estavam de antemão escolhidos.
Por acaso os anjos foram na frente para decidir quem ficaria em Sodoma? Uns pagam pelos outros, é assim que funciona. Esse pensamento varreu qualquer possível dúvida.
A porta foi aberta e a secretária, bobinha e mal educada, entrou na frente. Foi a primeira.
O som de tiros e tiros, arma jogada ao chão alguns puderam ouvir e contar. O homem saiu correndo depois, deixando um medo insano e a única vontade era sair do inferno, mas quem passasse por ele tombava. Entrou na sala da diretora que não teve tempo de perguntar sobre o que estava acontecendo, caiu em cima dos papéis manchando-os de sangue. Ele sentou-se no pequeno sofá de forma confortável e atirou. Um ponto privilegiado, enxerga-se o pátio onde os menores já estão.
Como se consegue fácil uma submetralhadora? Pergunta tardia. Atirou a esmo até a penúltima bala que mirou a têmpora e o levou embora emborcado sobre si mesmo.