quinta-feira, 29 de abril de 2010

ESTRANHAMENTO


A voz do piloto avisou a aterrissagem.
Espiava minha cidade natal há algum tempo. Reconhecia as voltas do rio, as ilhotas, a chaminé que virou monumento. Até meu bairro de infância podia adivinhar no meio de tudo.
Não conseguia ver-me caminhando nas ruas conhecidas, revirando as gavetas que deixei. Os brinquedos que quebrei. As cicatrizes que trago.
Provavelmente meu retrato ainda está na prateleira junto com todos os outros. E meu cachorro sorrirá latindo para mim, ou latirá sorrindo. Eta, Roberto, essa foi infame! Até meu cd do Roberto Carlos estaria a um esticar de braço para entrar no som. Eu nem gostava mais do rei, dei-me conta. Meus ouvidos estavam cheios de outros sons e ritmos.
Os amigos e a família estariam festivos no aeroporto e haveria abraços, beijos e batidinhas nas costas. Eu estaria longe dali e teria aquele sorriso parado com a saudade já beliscando.
Porto Alegre é gaúcha, hospitaleira, me lembro bem do quanto aprendi sobre isso na escola decantando as maravilhas de ser do sul e o orgulho que inflava meu peito até ir embora daqui.
Fui.
Escorreguei suavemente a passagem para outras terras e sotaques que encantaram meus sentidos. Lá encontrei um cara que nem sabia que era eu. Um cara legal que ria e não tinha medo de nada, nem de ser assaltado na esquina. Lá não tem assalto e as ruas são largas para se caminhar nas madrugadas amigas.
Demoro o mais que pude para sair da sala de bagagem, ficar é não ter chegado. As malas rodam conhecidas várias vezes e o pessoal lá fora fazendo zoeira, abanando. Todos me querem e eu quero apenas vê-los rapidamente e pegar o primeiro avião de volta.
Depois de toda festa de recepção que não foi nem um pouco diferente de qualquer outra, entro no meu apartamento desejando que ninguém queira ver os souvenires. As ocupações que os chamassem e saíssem correndo por que precisava chorar o tempo acabado.
Não tinha nem a desculpa de ter deixado amada para trás, embora tenha deixado amores mil, nenhum da cor de anil do meu Brasil. Meu Brasil... Quero mais é te ver pelas costas, cheio de falta de oportunidade, de reflexos pregressos de vícios burlescos e dantescos. A vida lá fora cheia de charme e educação abrindo as portas e não as bundas expostas das boazudas brasileiras.
Lá ninguém joga papel no chão e latinhas não são atiradas pelas janelas. Aqui, se atropela até o cachorro do vizinho que não buzinou a passagem. Pode acontecer de escorregar num coco na calçada, mendigo não tem sanitário e até acha que isso é palavrão.
Moro aqui e ficarei até que as asas terminem de crescer nas faculdades que me darão o passaporte para virar de outro mundo. Deus é brasileiro. Sou ateu, ainda bem.
Trago comigo uma nova história e isso significa revolução.
Procuro os amigos, louco para contar as descobertas, as vivências boas. Todo mundo está casado, não tem mais tempo para rir ou tomar um chope. Ouvem desatentos, agora são homens sé-rios, não podem jogar conversa fora. São bobagens de botequim e eles sentam-se às mesas de toalha branca e louça marinex.
Tento cumprimentar os vizinhos. Quando respondem é de cabeça baixa e eu nem entendo o boa tarde, ou boa noite. Talvez nem tente nada e pense que tento no intento de entender.
Não dá mais para bater na parede e convidar o companheiro para fazer um levantamento da despensa e jantarmos juntos. Ou ir numa tasca para ouvir, só de sarro, alguém ou nós mesmos can-tando música de dor de cotovelo com os cotovelos apoiados na mesa.
Os museus e lugares históricos sumiram. Os passeios e o atrapalho das várias línguas que nunca impediram a aproximação, sumiram. Tudo ao redor de mim sumiu e existem árvores de cachos maduros de saudade e gente caraminholando de lado histórias banais.
Não sou mais daqui, pensei numa tarde em que a TV estava de última e o Faustão interrompia as falas dos outros com as piadinhas mal colocadas e esculhambantes. Chorei. Um marmanjo chorando. Tinha graça essa! Chorei com vontade e não tinha graça nenhuma.
Aos domingos as pessoas visitam a família ou tomam chimarrão no parque. Estes tem árvores jovens de cem anos por que as antigas não conseguiram atravessar o oceano a nado e têm encantadores quinhentos anos copados.
As tardes de Lisboa me espiam pelo computador onde as risadas e o companheirismo estão guardados para eu acreditar que se pode viver diferente e o mundo não é pequeno. Onde a gente casa e não precisa ficar velho e chato por causa disso.
Estranho... Para onde foi a famosa cordialidade gaúcha? Se eu for num CTG talvez encontre, mas se estiver pilchado e falar português guasca senão podem me considerar um Et sem graça vestido de jeans e camiseta recém chegada de outro planeta.
Estranho tudo. Ou terei eu me tornado estranho. Um estranho no ninho. O filme fala bem da descabeçada humana, onde a loucura ronda sem espaço para ser feliz. Eu me sentia desta forma entre minha gente.
Namorar ficou difícil. As gurias se grudam na gente já nos enxergando de gravata prateada no altar ou dão até na esquina e passaram por todos os amigos que casaram com alguma delas que se tornaram matronas do dia para a noite. Algumas no corpo, outras no espírito.
Passei a considerar esta cidade que eu amava o ó do borogodó. Amamos as cidades, os luga-res pelas pessoas e não pela aparência, ou clima. Não somos geográficos, somos sentimento. E estou me sentindo um merda perdido neste labirinto de intenções sem intenção de coisa alguma além de marcar os dias que passam na folhinha do acabou mais um. Vou levando, empurrando com a barriga. Como ouço esta bobagem! Não quero empurrar nada, quero é viver cada dia existindo nos minutos e segundos de horas inteiras.
Talvez esteja vivendo a cidade que construí internamente e ela está cheia de ruas vazias e pessoas que vão e vem sem olhar para os lados por que é comprometedor. Corro o risco de ser atro-pelado ao atravessar a rua já que meus olhos estão cegos e vejo luzes inexistentes em arco Iris de cores multifacetadas com sons feitos de partículas de água refletindo o oceano que atravesso dentro de mim.
As cidades têm a alma das pessoas. As daqui são tão pequenas e vêem seu umbigo como o sol do Universo e as coisas enraízam como se árvores fôssemos e não pássaros que podem voar e voltar para o ninho com asas mais fortes e coragem tanta.
Vou-me embora,
Vou-me embora, prenda minha.
Tenho muito que fazer.
Tenho que ir para rodeio,
Prenda minha,
No rincão do Bem querer.

Vou-me embora.


Vana Comissoli

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