sexta-feira, 30 de abril de 2010

CAFÉ COM CHANTILLY



Jorge sentou praça na cavalaria
E eu estou feliz porque
eu também sou da sua companhia

Em dez minutos estaria encostada no balcão da lancheria ao lado do escritório tomando café com chantilly. É inacreditável que vendendo máquina de café todos os dias e tendo á volta um leve cheiro de grão torrando ainda tivesse ânimo para se render ao hábito.
Tássia era assim mesmo, meio programada. Provavelmente acabara se tornando mais um botão no teclado do computador, seu fiel escudeiro. Bonitinha e simpática, o sorriso às vezes espontâneo, outras nem tanto, estava sempre nos lábios, ela mesmo ria-se disso sabendo quanto treinara a expressão na frente do espelho.
Enfim... C’est La vie. E se levantava para o café que a retiraria do ascético escritório super “clean” onde os móveis anonimamente em branco e preto e de vez em quando, bem de vez em quando, por baixo dos tapetes ouvia-se um proibidíssimo som de atenção do MSN de algum transgressor. Transgredir um pouco é a grande aventura e, como todos sabem, não há quem não o faça, ainda mais quando encurralados em prisão de janelas abertas.
A lancheria... O de sempre. Ois e como vais, cortando o espaço absolutamente sem querer saber coisa alguma. Eventualmente um mais verdadeiro surpreendia a todos e as cabeças se viravam na esperança que fosse para si.
O colega da outra sessão espalhava-se demais no balcão. O conhecia de vista, nem o nome sabia. Um João da vida qualquer que agora a aborreceria. Estava com uma daquelas dores de cabeça semanais e já sabia que não era enxaqueca, apenas enche a cueca com a saturação de trabalho e precisando de umas boas férias. Tinha vendido as últimas por falta crassa de dinheiro.
Olhou em torno e reafirmou que a única banqueta disponível era ao lado daquele monte de papéis de óculos. Tentou se espremer para pelo menos caber a xícara. O sujeito nem se mexeu, continuou de olho grudado no lap top como se estivesse em sua casa, só faltava mesmo era por os pés em cima da mesa.
Dor de cabeça é uma situação que compra briga quando não passa há três dias. Tudo incomoda mais do que o normal. Falou baixinho um, por favor, entre dentes. O cara não deu sinais de estar vivo.
Resolveu não se incomodar e pegou a xícara por cima da papelada. A mão tremia de dor e de raiva. Uma facilitada e entornou café num banho marrom açucarado de chantilly. O colega deu um salto, ficando em pé ao lado da banqueta e Tássia esperando o tamanho do esporro que levaria. Seu Milton servia o café em tamanho duplo sem que ela precisasse pedir e então o estrago foi tamanho dobrado. Alguns respingos no lap top. Céus valei-me!
Antes de sequer me olhar, vistoriou seus papéis, limpou com a barra da manga os respingos que borraram a tinta e ainda olhou em torno procurando algum que tivesse voado.
Eu, Tássia, taça cheia de fel ali, parada, esperando e botão de computador, louca para apertar delete. Tudo acontecendo em maiúscula e o tempo andando no ritmo de quem olha o relógio quando ele não mexe os ponteiros.
Seu Milton buscando pano de limpeza.
A lancheria toda de xícara na mão parada observando. Algumas caras de riso contido e outras penalizadas. Tássia que era eu e não gostava nem um pouco de ser o centro das atenções justo no pior momento e nunca tinha sido nos bons, esperando. Não havia nada mais a fazer. Até havia. Poderia ajudar, recolher, ir me desculpando a cada gesto. Paralisada. Que saco! Estava inerte e insuficiente com uma xícara escorrida na mão. Para sair do espasmo olhei o chantilly escorrendo em meus dedos.
Chantilly é bom. Por incrível imposição de fuga pensei nisso e lambi como se criança fosse ainda, descobrindo que era. Seu Milton, com o pano no ar me olhando como quem não está acreditando.
Fiz uma volta sobre mim mesma, nem acredito, mas em passo de dança. Acho que rumba e pedi mais chantilly.
O coitado do homem pegou a bisnaga, caríssima, diga-se de passagem, e encheu minha mão do creme leve e açucarado. Daquele jeito de sorvete italiano que de italiano não tem nada e custa apenas um real. Sei bem por que compro escondida todos os dias antes de chegar ao trabalho e jogo fora a pazinha do bom comportamento e vou lambendo com a criança que sou.
Foi só então que o sujeito sujeitado à minha esculhambação levantou os olhos e vi que eram azuis apesar do cabelo negro, negro. Vi também que a boca era rasgada, mas não faltavam lábios por que não gosto daquelas bocas de traço que não dão espaço para beijar. Não sei como me passou esse tesão de beijo numa hora dessas.
Logo em seguida para espanto de todos e nem um pouco espanto meu, ele atirou no chão os papéis e ainda deu um tapa no lap top que a Dell e até a Apple sofreriam tal qual bofetão na cara e eu vi, frente a frente os olhos azuis rindo e levando para a boca o riso.
Esqueci que era botão de computador e caí na gargalhada enquanto ele esticava a mão por que tinha me curvado no ato e talvez pensasse que estivesse bêbada e me segurava na queda.
Meu nome é Jorge e o teu?
Tássia, meu nome é Tássia taça cheia de amor para dar.
Saímos de mãos dadas e eu achando que Jorge é um nome chato e antigo, mas afinal também poderia ser o da Capadócia. Então está tudo bem e encontrei as armas de Jorge que sempre carreguei.

Vana Comissoli

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