domingo, 20 de janeiro de 2013

A SENHORA E O MENINO

Sob o viaduto agasalham-se os cidadãos rejeitados pela cidade que tem fome. Uma dupla chama a atenção: uma mulher muito gorda tem no colo um menino de idade entre cinco e dez anos. Difícil definir. Ela está recostada no concreto com o menino atravessado sobre as pernas. No sono dele, a cabeça e um braço escorregaram para fora do colo. De longe o menino viu a imensa figura recortada pelo clarão proveniente do poste da rua, embora alguns galhos do jacarandá que o rodeia coloquem manchas escuras sobre ela. Arrastou o passo, os pés nus limpando o chão. Das Dores não era de brincadeira e o menino não cumprira sua promessa. Não fora feliz. Das Dores viu o moleque retardar-se. Buscar uma lata amassada e volutear com ela. Esfregou os pés saídos das chinelas rotas com vagar, como touro que se dispõe a uma peleia. Ajeitou as nádegas colossais sobre o exíguo muro e esperou. Rafael percebeu o tapete de flores lilases, quase luminosas, devido aos olhos que se escondiam procurando desvios. Não teve tempo de achar bonito, nem de verificar que eram flores. A mulheraça atacou-o: - E aí? Conseguiste?- Deu nada, das Dores. Todo mundo unha de fome, hoje. – A voz saiu firme que boiola não era. Ela cresceu sobre ele, a banha dos braços batendo no compasso do corpo. Rafael encolheu-se, protegendo o rosto na curva do cotovelo. A mão desceu pesada ao lado do ouvido. Junto com o baque veio um zunido fininho e o escuro. Deu uma vontade danada de entregar-se, mas ficava mal, das Dores pensaria que estava se acovardando. Reagiu. Levantou a cabeça. A mão desceu do outro lado. Chamou-a de filha da puta velha e gorda. Imediatamente ela desabou sobre a mureta e soltou o choro fácil. Rafael respirou aliviado e esfregou a cara ardida: estava tudo bem. Já passara... Já passara. - Tu és burra, das Dores. – Falava e badalava diante do nariz dela a lata vazia. – Pensa que o pessoal dá comida todo dia? Tá difícil tem um mundéu de casa sem ninguém. Um mundéu de gente com fome. É sábado, esqueceu? Ela espremeu os olhos com os dedos de unhas curtas, roídas e debruadas de preto. Foi puxando uma ladainha que saía de dentro do peito acompanhada de suspiros, de ais. De arrancos de respiração e um cheiro azedo de fumo. - Ta ruim... Ta ruim! Vive dizendo isso. Por acaso enche barriga? Por acaso não preciso comer? Tu também precisas... Embora nem tanto já que é mirradinho. Porcaria de mãe tu tivesses que não te fez grande, magrinho assim, não assusta ninguém e dificulta outra atividade que a gente queira arrumar. Não sei onde estava com a cabeça quando te peguei na rua. – Peguei de pena, ouviu? – A voz cresceu: - De pena! Rafael ouvia de cabeça baixa. Revirava as flores lilases nas quais pisava com desaviso, roubando sua luz, transformando-as numa pasta escura e úmida. O muxoxo da boca mostrava sua contrafeita concordância. Das Dores calou-se. Enfiou a mão entre os seios e coçou-se sacudindo as tetas num pra-baixo-prá cima acompanhado pelos olhos baços de Rafael. _ Quem se faz agora, meu lindinho? – perguntou puxando-o junto ao peito, aonde ele foi se chegando já de cara ladeada para não se afogar. Um rido fechando os olhos e estrelas mostrando os dentes. Passado um minuto respondeu que não se preocupasse, ele era homem e daria um jeito. Ele não tinha prometido que sem comer nunca mais dormiriam? E ela não tinha acreditado? - Claro que sim, meu pintinho. Claro que sim! – Esfregava os braços do menino, sacudia o corpo a niná-lo em pé mesmo. Rafael empurrou das Dores escapando das carnes fartas. Atravessou a avenida correndo. Um carro buzinou furioso. Afinal o outro lado. Tudo tem dois lados. A porta do bar botava uma lua clara na calçada, carregada de cheiro de fritura, de queijo derretido, do que não se ousa. A miséria. Rafael foi entrando meio espremido na parede e escorregou pelo balcão. Foi interpelado pela voz de mando: -Que é guri? Vai dando o fora! - Tio, dá um sanduba. To com fome, não comi ainda hoje. Os olhos do homem caem na cara suja, vêem os braços desamparados e os ombros um pouco mais caídos do que de costume. - Fora! – muda o tom e fala baixo: - Tem muita gente. Volta mais tarde. O moleque foi saindo devagar, pesando as possibilidades. Na mesinha junto à porta, sentava-se um velho. Acho que já tem uns cinqüenta anos, pensou Rafael, aproximou-se, pediu um troco, ganhou uma moeda. Já servia. Na rua olhou para das Dores escarrapachada no muro. A noite caíra por completo. A luz do poste tornara-se mais forte e o chão lilás parecia néon. A mulher colocara um pé sobre a mureta e era um milagre que conseguisse equilibrar-se. Estava concentrada vasculhando alguma coisa nos dedos. Rafael lembrou seu cheiro de suor velho, urina choca e sujeira entranhada. Precisava dar um jeito, ela não poderia ficar triste. Foi até a fruteira na outra esquina. Primeiro pediu e depois roubou a maçã vermelha. Das Dores gostaria. Atravessou a avenida. Desta vez não retardou o passo, chegou triunfante, a fruta escondida nas costas. - E daí, seu bosta, conseguiu? – A mulher sorria e estendia a mão. Recebeu a maçã que esfregou forte na saia. Rafael sentou-se entre as flores do chão com o olhar triunfante grudado na amiga. Mais da metade da fruta fora comida quando foi entregue ao menino. Ele deu poucas mordidas e devolveu. Das Dores limpou a boca com as costas da mão e arrotou. Rafael fez a mesma coisa. Ela declarou que o aperitivo estava bom. Ele sacudiu a cabeça afirmativamente e contou que "seu" Carlos do bar daria comida. De novo a mulheraça atochou-o no peito e embalou-o, em seguida empurrou-o quase o derrubando. Quando a lua arredondou no meio céu já haviam comido a maçã, um cheeseburger, meio cachorro quente que alguém farto colocara no lixo, duas coca-colas, um yogurte e dois goles de cachaça que bebida boa tem que ser arrematada. Os últimos petiscos foram comprados depois que das Dores vasculhou o cofre dos seios. Rafael encostou-se nas pernas travesseirosas e fechou os olhos. Ela coçou-lhe a cabeça por instantes e convidou-o a partir. Abandonaram o círculo de luz caminhando lado a lado. Ele, de vez em quando, chutando uma lata, uma pedra. Tinha colocado os tênis dois números maior que o pé, ela sempre os trazia na sacola. Caminhava balançando de um lado para outro, as coxas batendo enquanto o resto das pernas não se tocava. Às vezes apoiava-se na cabeça do menino. Chegaram ao viaduto. Ela sentou ajeitando os trapos de cobertores sob a bunda e puxou-o para o colo. Ele aninhou gostoso, enfiando o nariz no sovaco quente. Das Dores encostou a cabeça no concreto. A noite estava tépida, era bom o tempo da primavera. Do outro lado da avenida os jacarandás derrubavam suas flores em ilhas luminosas e lilases. Demoraria a dormir, podia ninar um pouco seu anjo. Mergulhou o nariz nos cabelos dele e pensou que se amanhã fizesse calor o mandaria tomar banho no lago da praça. Aos poucos fechou os olhos e cochilou, nem percebeu quando a cabeça e o braço de Rafael escorregaram para frente quase tocando o chão. Vana Comissoli

NO PRINCÍPIO...

E formou o SENHOR Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente. Gênesis 2:7 E da costela que o SENHOR Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão. Gênesis 2:22 Adão ainda estava cabisbaixo pensando no mico pago, saindo daquele jeito “nu com a mão no bolso” do Paraíso chatinho, certinho. O anjo guardava na face de porcelana (por que será que todos os anjos tem face de porcelana sem nenhuma espinha, ou verruga? Depois dizem que o Pai não tem preferências!), um sorrisinho de escárnio feliz enquanto embainhava a espada maior do que a de Ricardo coração de leão. Lá por trás das asas se vangloriava: o que estavam pensando esses miseraveizinhos se imaginando donos do Éden e filhos preferidos de Deus? Tomem, papudos, vão cantar em outra freguesia e a maçã... Terão que vender na feira. Eva, emburrada, pensava que era fácil ser mandão e dá-lhes um pé na bunda com um espadão daqueles. Foi quando voou uma borboleta inconformada com a injustiça feita e se bandeou para o lado de Adão e Eva. Pela primeira vez a primeira mulher parou para ver as cores rutilantes das asas do inseto e se deu conta que poderia ter sido uma boa sair do som de harpas enjoativas se pusesse a imaginação a funcionar. Imediatamente sonhou luz neon, grifes fantásticas que brilhariam nas letras luminosas na fachada de shopping enormes onde poderia adquirir e, melhor ainda, vender, asas de todos os matizes para as mulheres que pariria às pencas se fosse abelha. O anjo voltou para o Paraíso e ficou meditando em como seria agora sem ter ninguém para dedo-durar, podia ter sido uma ruim emplacar aqueles dois branquelos. Não teria mais a quem pregar peças de bem e mal e a coisa paradisíaca tenderia a ficar muito chata. Em seguida questionou o Pai sobre por que os tinha feito branquelos se nem sequer era uma cor original, muito mais razoável tê-los feito negro ébano para suportar o calor que teriam a enfrentar. Talvez para o castigo ser maior ainda ou estaria já meio entediado e começava a criar a primeira confusão de racismo para quebrar a monotonia daqueles anjos saiúdos que nem sabiam dançar. Adão viu Eva se requebrando toda enquanto colhia flores (o Pai foi bonzinho e deixou este colorido escapar sorrateiro para dar uma forcinha aos filhos amados). Pois Eva colhia flores, ainda não tinha inventado o tecido e precisava de algo bonito e estético que cobrisse a perseguida para os muito meninos, rola para as carolas, buceta para os à toa e vagina para os intelectuais. Como ainda não tinha inventado nada para fazer e vendo Eva se divertindo (a mulher é sempre mais criativa, logo criou a diversão), olhou as nuvens do céu que também escapavam do Paraíso pela fresta que o anjo, ocupado com pensamentos pagãos de revanche satisfeita, deixara. O vento do lado de fora da temperatura sempre perfeita, era forte e empurrava as nuvens formando desenhos. Foi assim que Adão aprendeu a sonhar vendo as formas malucas desenhadas nos céus. Assim, quase sem querer, ou dado pelo Pai, segundo algumas teorias, que penalizado pelo severo castigo, deu um jeitinho bem brasileiro de facilitar as coisas. O Pai era a sabedoria sem idade e sobre todas as idades que viriam, portanto, logo de cara já foi inventando o gérmen que, depois de maduro, seria o Brasil. Adão perdeu a desesperança e acontecesse o que acontecesse, sempre começaria tudo outra vez. Fosse dilúvio, terremoto, vulcão, enchente, explosão atômica fabricada, fome de secar tripas, matança desgovernada, guerra ou guerrilha, Adão tentaria e tentaria e tentaria novamente. Até espetado numa cruz ele falaria em ressurreição. Eva, se maquiando sobre margens plácidas declarou convicta: Espera um pouquinho que te dou uma força, Adão. Mas pega leve senão me mando com algum Moisés, ou Efrain que vai nascer ainda. Adoro minha programação de homens “barriga tanquinho” e, mesmo podre de velha, ainda caço um Gianecchini lá pelos ainda não idos anos 2000. Sou mulher, posso qualquer coisa e fora do paraíso, posso mais ainda. A borboleta, percebendo a brecha na entrada do Éden, deu um assobio maroto e a bicharada escapou aos casais para o lado de cá que já era muito mais divertido e se poderia fornicar, fofocar e ir ao cinema mesmo que dando um duro danado. Muito tempo depois, quando os dinossauros já tinham perdido a vez há centenas de anos, nasceu uma mulher de nome Maria que, dizem, veio interceder pelo lado negro da força e os esotéricos segredaram que ela já existia desde sempre e era uma borboleta. Por isso, até hoje, disse que as borboletas são a presença de Maria quando estamos lutando com Darth Vader. O anjo está até hoje morrendo de dor de cotovelo por que apesar dos esforços em mandar tudo que é desgraça para o lado humano da vida, desde chocolate mofado até crack desencarnado, as coisas dão certo no geral. Dizem que a mania de Adão acreditar e ter inventado um desvio chamado Esperança. A cobra... Que cobra? Não apareceu nenhuma! Dizem que a culpa foi dela enfeitando a maçã com sedutoras cores vermelho brilhante. Que escolha mais boba! Com tanto fruto mais suculento e saboroso, escolheu logo a maçã! Essa história de cobra foi pura invenção. Outra mania a que Adão aderiu: sempre encontrar um bode expiatório para as asneiras cavalares que faz. Com a permissão do senhor cavalo que é lindo e tão certinho que até seu cocô é redondo e não faz sujeira espalhada. O senhor Pai está lá feliz da vida com sua criação, tanto que lá pelas tantas chamou um anjo e provocou, provocou até o coitado cair em desgraça e perder o luminoso nome de Lúcifer se transformando em Satanás. Mas não foi por mal não, foi por amor, a vida seria coisa tão chata quanto o Paraíso se não houvesse um pouco de pecado por aí. O sal da vida, que sem sal só serve para quem tem pressão alta. Vana Comissoli

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

A NEGOCIAÇÃO

A tarde ia a meio, o sol se entornava pelos campos espraiando lagos ilusórios. O infinito se reconhecendo no pampa. Vazio e verde. Uma incomensurável colcha cobrindo a terra até o horizonte longínquo. Esta era a visão para a qual se abria a varanda da estância. Os dois patrões sentavam-se em amplas e confortáveis poltronas, modernidades que o Coronel Leôncio, dono da casa, trouxera da capital. O chimarrão cambiava entre eles em espaços rítmicos e a conversa variava de acordo com o intervalo das mamadas na bomba e o encher da cuia. Tratava-se de negócios, a solenidade se impunha e, a ocupação com o ritual gaúcho, propiciava tempo para pensar. Reavaliar as ofertas, sopesar os aceites. - Como lhe digo, Coronel Atelfio, o negócio é mui bonitaço, por isso lhe chamei primeiro. Somos amigos de velha data, de lenço vermelho os dois, seria descabido não oferecê-lo em primazia. – Justificava o hospedeiro rasgando-se em gentilezas camufladas pelo tom imperioso da voz, coisa de macho gaúcho quando está arriado de medo. O outro, cerca de dez anos mais jovem, tirou a faca da bainha presa à cinta e palitou os dentes fortes a deixar claro que não era chimango. - Lhe agradeço, bem vejo sua finura que, aliás, de há muito me é conhecida. A verdade é que não vim preparado para tal proposta, pensei em campos e boi. Impõe-se que me explique os detalhes da empresa. É mui grande. O coronel chamou a guria de serventia da casa, costurada ao batente da porta à espera de ordens e cujos ouvidos, por hábito ou desaviso, nada captavam. Fosse ela buscar algo de se mastigar, o estômago reclama. Carne do churrasco sobrado, ou um mogango fervido recém. Logo o anfitrião limpou a garganta fumaceada desde os doze anos por palheiros de sabor acre. Solene, pôs-se à disposição do visitante para os esclarecimentos exigidos. - O que lhe renderá essa empreitada? Sem dúvida seria difícil explicar tim-tim por tim-tim. Nem poderia descrever a alegria e o descanso que usufruíra, não é coisa que se conte. O importante era saber que se tratava de material de primeira e demandava avaliação, conhecer o preço inicial. Custara caro, muito caro: cabeças de gado, um eito de terra, fora as sementes híbridas de pasto das quais era pioneiro. Não as daria por pouco. Coisa boa, resmungou entre dentes, olhos perdido para dentro, me chegou em primeira mão. Lhe afianço: não tinha uso nenhum, a formei lentamente, dentro dos ditames da necessidade e, é claro, do retorno do capital investido. O coronel Leôncio terminou a fala batendo no taco das botas num cacoete que apenas os da casa sabiam denotar nervosismo. Os resultados bem vejo, respondeu o visitante, nas modernidades de sua estância, nos seus setenta anos rijos, no cheiro que vem da cozinha e até nessa erva uruguaia que nunca tinha provado. Excelente, diga-se de passagem. Tem gosto de sangue e fogo derramado no pampa pelos dois lados. O mais velho, dono da cuia, cevou o mate com compridas e aromáticas folhas de capim cidró recém colhido no quintal. Traziam no cerne o doce cheiro do mel da terra. Demorava-se no feito pensando nos benefícios, tão gratos, que vendia agora. Uma saudade prematura lhe trouxe um turvejar dos olhos. Reclamou da fuligem do fogão de lenha que chegara à varanda. Pigarreou, era entrado na idade. Coisa de guasca que não se mostra, coisa do Rio Grande. _ Que lhe posso dizer, Coronel Atelfio? O único motivo que me leva a lhe entregar a menina de meus olhos é a velhice e o que a carcome. Se achega sem pedir licença, me tolhendo o movimento e a prontidão. A cabrita é jovem, tem veias grossas. No más, nada tenho a reclamar. Marialva, esposa do dono da casa, entra com pratos de pé-de-moleque e rapaduras de leite. Que tão bem adoçam o chimarrão amargo que circula no sangue gaúcho. É uma mulher, percebe-se pelo cheiro de flor. Não precisa fazer trejeitos de quadris para os homens respirarem fundo e sentirem-se vivos. Atelfio examina-a de olhos disfarçados: sopesa os peitos, arredonda-se nas nádegas. Avalia o entre-pernas e, com cumprimento cavalheiro, lhe acena las buenas. Sem levantar-se. A senhora não é tão jovem, os quarenta anos a adornam, puseram brilho pela postura do pescoço e das marcas suaves em torno da boca generosa e cortante. De onde as palavras não saem audíveis, mas ferem no silêncio. A lavanda de suas saias alivia por onde passa. O útero, imparido, espera a semente. Faz-se necessária constrição. O “jovem” ajeitou o lenço vermelho, amarrado em laço gaudério, último marco de seus desatinos, dava tempo ao seu interlocutor se refazer de uma emoção que não deveria ser percebida. _ Me dê espaço para uma boa mijada, Coronel. O mate é forte barbaridade. Levanta-se atrás da fêmea. Segue seus rastros. _ Pois é certo que vá. Sabia muito bem o que estava falando. O alívio da ausência é um ar frio de minuano que varre a varanda abrindo pulmões e arrepiando a pele. O ar vem do Uruguai, galopando, lança em riste. Vem da Argentina, argenta subitus, trás na alma o gosto cortante da guerra e da solidão. Leôncio aspira fundo. Geme. Retorna a uma primavera terminal. Nessa noite o senhor da casa cobriu sua mulher como nunca antes. Ela dormiu em paz. A tratativa é lenta, como se caminha no pampa. As tardes se alongam e os homens enchem suas bexigas acostumadas à água amarga que sai da bomba. Luta e guerra. Rio Grande. De alguma forma tudo deve chegar ao fim. Felizmente ou... quem sabe? Quem sabe o cancro se recolhe ao casulo? Quem sabe a idade não rói os ossos? Quem sabe um cavalo mouro... Quem sabe apenas curva e não... Quem sabe? - Coronel, tudo que precisava saber já está sabido, me cabe lhe dar a resposta. – A voz é firme, a mão é dura, as bombachas são largas e as botas cheiram a gordura nova. A meninota da cozinha entrou, apertou as mãos, enrolou a barra da saia entre os dedos. Quem sabe rapadura? Quem sabe pão de aipim? Bons-bocados? Arcanjos? - Saia, saia que não queremos nada! – o dono da casa não pode mais disfarçar o nervosismo. Chegou a hora. Quer realmente fechar o negócio, ou melhor, seria morrer com ele? – Pois sim, Coronel Atelfio, é esperado que se manifeste. - Aceito! A chaleira tomba, água quente espalha-se pelo chão em meio à fumaceira. Os dois homens apertam-se as mãos e batem nas costas um do outro. O contrato está assinado. O vendedor sorri, a pele curtida pelo sol e pelo Minuano parece fosca e a boca logo volta a fechar-se contrita. O comprador arruma as costas arredondadas pelo abandono sobre o cavalo e penteia com os dedos os bigodes fartos que parecem ter escurecido nos últimos dias, não se vê mais as pontas brancas amareladas de fumo. - Só nos falta legalizar a venda. Como se fará isso? - Não se preocupe, amanhã mesmo chamo o advogado e encaminho a separação, depois o senhor pode casar de papel passado, que é minha única exigência. Isso sacramenta a empreitada. Não pretendo reter nem sequer a minoria de minhas ações. Vana Comissoli

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

ADEUS ANO NOVO, FELIZ ANO VELHO

9... Ana Lúcia Eu nasci como todo mundo, ou talvez um pouco melhor por que nasci dentro de um hospital, com uma mãe me desejando. Sabendo que fora daquele local acético e anônimo, haveria calor humano com todos os seus erros que, sabia, viriam sobre mim. Ainda assim, eu berrei. Berrei para viver e por que isso dá um medo danado. Teria que enfrentar vestibular concorrido e deixar metade da vida sob um trabalho qualquer, se quisesse ter a enormidade de coisas que o mercado me ofereceria e eu nem sabia se as desejava de verdade. Metade de mim seria eu, a outra metade seria comercial de televisão. Danielson Nasci meio a contragosto, nem sei se parido ou cuspido dentro de uma ambulância que engasgou no meio do caminho bem na hora que pus o nariz no mundo. O paramédico fazia seu primeiro parto e suava em bicas enquanto os berros de minha mãe encobriam os meus. Não é mole entrar em trabalho de parto neste dia miserável quando todos estão enchendo a cara e se mora pendurado num morro qualquer de uma cidade qualquer do Brasil. Logo de cara meinha mãe carimbou meu nome: o pai era Nelson e ela Danira, o resultado foi esse nome meio americano que achei legal. Afinal só eu continuei berrando e me tornei a sirene da ambulância, já que ela não possuía uma. Antevia os pés no chão roçando a água de esgoto que sempre corre em algum canto de meu “bairro”. Enxergava as janelas basculantes da FEBEM, ou de outra instituição do gênero onde as basculantes substituem grades. Yasmin Não sei se nasci ou simplesmente abri a porta e entrei no mundo. Foi suave e tranquilo, passei de uma água morna para outra até ter condições de chorar delicadamente para meus pulmões aprenderem e se encher e esvaziar. Meu pai distribuiu aos amigos “puros” vindos de Cuba com todos os carimbos da procedência. Brindaram no apartamento com minha mãe, depois de ter sido maquiada para as visitas, com Veuve Clicquot Rosé. Eu era uma menina. Quase não chorei depois disso. Babás diuturnas me embalavam, lençóis de algodão egípcio não me espetavam e um enorme quarto com brinquedos que não cheguei a conhecer por inteiro, me admirava. 8... Ana Lúcia Subi em árvores, tomei banho de sanga, comi chocolate e esperei Papai Noel. Doces lembranças de bolos de aniversário com glacê colorido e meu nome escrito com caramelos. Joguei bolita, pulei sapata, lá no bem sul da minha terra. Tirei férias, pulei ondas, fui de castigo, levei palmada. Usei conga e chorei por uma boneca que andasse, o salário não alcançou e ganhei uma que sentava. Nem percebi que logo seria uma menininha e a escola do bairro para mim se abriria. Matemática contada em pauzinho de picolé, as letras se dando as mãos no quadro verde, desenhos coloridos pendurados e festa de São João me vestindo de prenda com fitas nos cabelos. Ai, bota aqui, ai bota ali o seu pezinho, me levanto ao êxtase em cima do palco improvisado. Danielson Berrei de fome, tive ranho, apanhei de cinta. Aprendi a andar levando roupa na casa da patroa de minha mãe. Do meu pai não lembro a cara, na primeira cólica que tive se sumiu na esquina, trocando as pernas depois de dar uma biaba bonita na cara de minha mãe que não sabia fazer outra coisa a não ser colocar berrão no mundo. Quando saía da vila, via os meninos indo para a escola enquanto eu soltava pandorga com cerol. Depois que foi avisada que se eu não fosse, perderia o salário família, minha mãe me matriculou no grupo escolar da esquina. Dia sim tinha aula, dia não a professora ficava doente e não aparecia. Dia não eu ia à aula, dia sim, eu não ia, mas na hora da merenda eu não perdia a fila. Yasmin Nunca vi uma vaca, férias no campo até que teve, mas eram resorts com cisnes e pôneis diariamente escovados. Meu quintal foi a Disneylândia e meus chocolates eram suíços. Os carrinhos de brinquedo eram movidos à pilha ou então com motor de verdade que eu dirigia pelo jardim. Aprendi inglês junto com português, bati na empregada e joguei copos no chão quando o suco não agradava. Nunca conheci a palavra Não. Comi carpaccio, salmão e cogumelos no desjejum. Tive babá eletrônica e luzes estrobocópicas para me trazerem sono de sonhos dourados, som estereofônico com cantigas de ninar. Tive aula de natação quando ainda não sabia falar, fiz teatro infantil, aprendi golfe com meu tio. Viajei para a Suécia sem saber que o mundo era redondo, fui à Tailândia aprender dança exótica. Esquiei nos Alpes quando era inverno e me bronzeei na Riviera no tempo quente. Não fui à escola antes de estar alfabetizada, ela que veio a mim cheia de livros coloridos e professores de todos os matizes. Andei de ônibus de curiosa enquanto meu chofer seguia atrás e minha babá me segurava pela mão. Meu pai era um empresário que todos chamavam de doutor e minha mãe era alguma coisa entre Eu sou e Sou eu. 7... Ana Lúcia Ai, que tempo de enormes sofrimentos e imensas felicidades! O primeiro sutiã, primeiro batom rosa-pele, meias de nylon, festa da escola, risinhos, frisson e contos românticos maravilhosos. O sonho do amor dourado que durava uma ou duas semanas fazendo meu coração pular no prazer de um olhar, ou lágrimas galoparem de meus olhos ao vê-lo, tão lindo, sorrindo para outra menina. O primeiro copo de vinho escondido, gosto ruim, meio amargo e tão chic de se beber. O ciúme e inveja visceral do tamanho dos seios de minha irmã mais velha. Os fantásticos pelos não aparecerão nunca para anunciar que fiquei mocinha? Ai, ele pegou na minha mão na sessão da tarde do cinema e as imagens se embaralharam na tela sendo minha a face da mocinha e ele se derretendo de amor era o galã que a amaria para sempre num terno e fabuloso beijo. Briga e bateção de pé, meus pais não entendem nada e implicam com tudo. Preciso dos meus 18 anos, só assim poderei fazer o que quero sem esta investigação ridícula. Não sou mais criança! Danielson Só me lembro que meu pinto ficou exigente e bater punheta virou uma gozada meio sem graça. Comer a Miquele foi um ato de coragem e tanto. Passei a ser respeitado e não me chamavam mais de rosca entupida. Fiquei macho homem. Passava uma novela na TV, minha mãe é louca por elas e depois se debruça em cima do arame da cerca inventada e fica falando dos fulanos da babaquice, como se fossem seus vizinhos de verdade. Algum dia moraria no mais esculhambado barraco de novela que sempre seria uma casa de bodoso perto da nossa? O que me deixava puto da cara era ver os mauricinhos troxas tendo ataque de bichice por que estavam na tal adolescência. Minha única dúvida e das muito importantes era saber que trampo eu escolheria: trabalhar no roubo ou no tráfico? Já ganhava uma grana nada fraca como avião, mas tráfico é aquilo: ou se morre ou se empedra. Não queria morrer cedo, deixar as tchutchuca sem derrubar é um desperdício. Empedrar deixa o cara sequelado, quer se goste ou não, dá que se perde a capacidade de mando. Houve uma briga com o Zé Foguinho. Eu já estava meio mamado e ele veio mexer com a mina. Me quebrou um dente, mas eu quebrei o nariz dele. Foi aí que fiquei homem e nunca mais deixei de ser. Yasmin Minha primeira bolsa Louis Vuitton não foi tudo aquilo que eu esperava, achei mais interessante ir à Paris com minhas primas. Visitamos a cabine do piloto por que era um e eu tinha verificado a mercadoria ainda no aeroporto. Chega-se à conclusão que homens mais velhos também não são aquilo tudo. Ficou nos tratando como se fôssemos débeis mentais que nunca tinham entrado num avião. Ridículo, nem me lembro de minha primeira viagem aérea, acho que ainda era de colo. Já a apresentação à sociedade foi sensacional. Adoro sair na página dos socialytes, é preciso pensar na projeção no mundo e eu fotografava muito bem. Festas e festas uma atrás da outra, charme e refinamento de primeira linha. Mamãe queria ir à New York comprar meus vestidos, achei um horror, sem dúvida a Itália e a França seriam muito mais instrutivas. Um Versace, nada mais e nada menos. Naturalmente houve desprazeres, há muito stress para nos mantermos realmente atualizadas e não correr o risco, “nem morta”, de ser vista duas horríveis vezes com o mesmo vestido onde as pessoas se repetiriam. As inquietações da adolescência me massacraram. Como parecer mais velha, escolher a maquiagem, o cabeleireiro certo, tudo isso destrói qualquer astral. Saí-me bem e atravessei heroicamente a fase. 6... Ana Lúcia Já pensava que era adulta, a doce ilusão dos anos verdes. Só vim a saber quando não eram mais verdes e sim um pouco amarelados, arranhados e surpresos. A escolha da faculdade a cursar foi um dilema de consideráveis proporções. Ou faria a felicidade de meu pai caminhando com ele pelos degraus desiguais da Engenharia, ou enveredava pelas letras por caminhos trincados, de chão batido e campos iluminados. Ele percebeu minhas dúvidas e me libertou. Como precisaria ser, consegui passar numa Federal e todos comemoramos entusiasticamente. Agora era levar muito a sério e me tornar uma profissional respeitada, já sabendo que apenas o curso não bastaria. Minha escolha necessariamente me levava a pós-graduações se eu quisesse me sustentar razoavelmente bem. Tinha tido os namoricos da meninice, cheios de perfumadas flores secas entre páginas, agora eu conheci o primeiro assustador homem da minha vida que eu não chamaria de pai. Não que o sexo fosse tabu em minha família, ou houvesse mística sobre ele, eu que não saberia dizer exatamente o que pensava do assunto e entrei tateando e insegura. O tempo passa e as laranjas se acomodam dentro da carroça, foi assim este período. Danielson O tráfico se mostrou mais fácil, mais ágil e mais rentável, enveredei pela trilha com revolver na cinta e um olho aberto dia e noite. Estava determinado a me tornar um cabeça, um patrão e não pouparia esforços, nem vidas, se preciso fosse. É uma luta constante e cheia de imprevistos, sendo que a polícia é o menor dos problemas. Se eu morresse cedo, teria que viver intensamente para não cair comendo formiga sem ter experimentado o que a vida me negara e eu tivera que conquistar a ferro e fogo. Se eu fosse preso, ao sair teria que lutar pelo meu espaço já certamente ocupado. É preciso ser muito forte e muito capitão para manter, dentro da cadeia, a mesma mão dura. Os dias se tornaram iguais e as noites se engoliam umas as outras. Havia o refrigério de muita mulher se pendurando no pescoço e o prazer descomunal de ser respeitado. Me tornei, com esforço, não foi de graça não, o Dani 38. Atravessei a pior fase me cagando todo, mas preso não fui e depois de certo estágio, a gente sabe que não pega mais nada. O respeito, o dinheiro e o medo, fazem uma boa escolta. Yasmin Queria estudar em Yale ou Harvard, mas balançava pela elegância de estudar na Sorbonne ou na Suíça. Qual área não era muito importante, não faria uso mesmo, só era inconcebível não ter um título legítimo. Resolvi estudar em todas, sairia falando várias línguas e isso ajudaria bastante nas viagens. Quem sabe a Alemanha teria alguma coisa que me levasse para lá? Não me preocupava nem um pouco com o tempo, eu era imune a ele, os cirurgiões estão fazendo milagre com o estrago que faz em nosso corpo e eu era extremamente cuidadosa. Alimentação perfeita, apenas os desvios dos jantares com seus foie gras e trufas indispensáveis. Uma verdadeira celebridade sabe que deve se render às iguarias, mesmo que vomite no banheiro trancado para prevenir quilos desconfortáveis. É sempre de bom tom caber esplendorosamente num biquíni branco que não é para qualquer uma. A cocaína já estava na moda e fazia parte do estilo de vida de uma pessoa de destaque, eu era inteligente e nunca me deixei fascinar, um brilho em noites de festa e depois a mais perfeita contenção. Tudo equilibrado e dentro dos moldes da fina educação que eu honrava. Foi divertido e eu tinha a estampa perfeita depois de pequenos reparos. 5... Ana Lúcia A maternidade me encheu de orgulho e trabalho, mas me deu muitas compensações: filhos engraçadinhos e saudáveis, como se espera de um casamento equilibrado onde as rusgas aparecem para dar revigorada na rotina de trabalho, casa, supermercado, escola das crianças, reuniões e finais de semana tranquilos. Eu aprendia sem pensar muito no que realmente era ser adulto, me saía bem e não poderia dizer que minha vida não era plena. Meu marido era tão equilibrado quanto eu e buscávamos os mesmos objetivos, em dois anos de casados conseguimos comprar uma boa casa, onde as crianças teriam espaço, quintal e solidez. Não emburreci por me tornar uma mãe devotada e esposa companheira, nunca parei de ler e o fazia com gosto, tinha uma coluna no jornal do bairro que me abria gostosas portas de bate papo. Era uma pessoa feliz e realizada. Danielson Quando se faz a escolha certa e muito cedo, tudo gira lubrificado, não precisava me importar com o tempo, a idade, isso não existe em meu mundo, apenas acrescenta mais facilidades e aumenta o prestígio. Nada precisava mudar de um ano para outro, apenas as festas do 31 de dezembro se tornavam mais generosas e embaladas. Não há o que dizer sobre o que se repete. Yasmin É meio cansativo casar, várias vezes é mais ainda, e ao mesmo tempo bastante divertido. Não há razão alguma para ficarmos presos a uma mesma pessoa eternamente, todos sabem que casamento só é bom no início e depois, saciada a fome, nosso apetite se refina para coisas cada vez melhores. Meu pai morreu e eu ainda estava na Europa estudando. Foi uma pena ter que deixar tudo e voltar ao Brasil para ir a enterro, mas meu pai merecia esta delicadeza. Não perdi muito, fiz as honras fúnebres e retornei, ainda tinha uns dois anos de estudos pela frente. Foi nesse tempo que conheci o Guido, os italianos são bons na arte da conquista e eu queria ser uma pessoa do mundo, portanto começar pela Itália ou França não faria muita diferença, sabia que faria escala em outras nacionalidades. Não nasci para pajear homem, eles sim, deveriam me render todas as homenagens que uma mulher de classe merece. Se não o fizessem... A fila anda. É bom ser uma mulher madura e segura de si. Consciente do que veio fazer na vida e tirar o máximo proveito de todas as condições oferecidas. 4... Ana Lúcia Há acontecimentos que não se explicam e nunca saberemos como de fato, se concretizaram. Foi acaso, eu diria, se minha amiga mais chegada não andasse lendo umas coisas instigantes sobre mundos paralelos, inconsciente coletivo e continuação da vida depois da vida. Aquela mulher deslumbrante, que me deu vontade de me enfiar num buraco por que fiquei a coisa mais insossa do universo, freou o tremendo carro quase encostando em mim. Eu tremia feito vara verde, foi desatenção minha ou dela? Assegurou-me que atravessei a rua sem olhar para nada e, sinceramente, não me lembro. Devia ser muito culta e saber bastante sobre leis, eu também sabia, mas na hora me deu branco e só queria voltar correndo para casa. Ela não deixou. Fez questão de me levar a uma clínica de sua propriedade, onde passei umas três horas em observação, embora nada tivesse me acontecido. Acho que foi assim que tudo começou neste fim de ano que deve ser um dos últimos que verei. Alguma coisa, acredito em milagres, destravou aquela brilhante, alta, perfeita em detalhes, mulher. Ela começou a falar e falei também tudo que os ciclos de nossas vidas tinham feito conosco desde que nascemos. Não posso entender como nos lembramos tão bem de todos os pormenores e continuamos contando dentro do carro quando ela me levava para casa. Fui me dando conta de minha vida tão comum e tão maravilhosa. Me dando conta que não precisa haver nada especial para se fazer se estivermos fazendo verdadeiramente. Yasmin, esse era seu nome, foi dizendo do imenso vazio que havia dentro de suas grifes fantástica e de como sua imensa casa não sorria para crianças que teriam estragado seu ventre liso e firme como aos vinte anos. Falou sobre o medo incomensurável que vinha tendo neste fim de ano que talvez fosse um dos últimos de sua vida. Danielson Estava enfastiado. Conseguira tudo que queria e agora esta falta de mudança, esse igual a tudo me cansava e dava uma monotonia sem paralelo. Lembrei-me de como e quando nasci, cada dia da minha vida e do que acabei não fazendo. A vida tem dessas desgraças, ou é de um jeito ou de outro, não existe a menor possibilidade de refazer, de apagar e tentar a maneira que deixamos de lado. Acho que foi a primeira vez que realmente pensei num encadeamento de ideias e de como não ter feito antes me deixou sem escolhas para o que seria, a partir de agora, que deveria estar vivendo um dos últimos finais de ano de minha triunfante vida. Talvez se eu tivesse escolhido apenas ser ladrão, houvesse possibilidade de ter sido preso e, encerrado. Talvez eu tivesse aprendido a pensar, já que nada mais existe na prisão além de pensar e se proteger para não ser morto pelo azar de estar junto com alguém do bando inimigo. Talvez eu ainda pudesse morrer em paz se saísse maluco e só, com uma arma na mão para assaltar alguém. Yasmin A criatura apareceu nem sei de onde, parecia mais caída do céu e freei a tempo de não transformá-la em mistura de asfalto. Não sei o que me deu por que pensei em consequências, estes detalhes tão abaixo de minha categoria, e a coloquei no carro indo muito devagar para uma das clínicas que herdara de meu pai. Os médicos, para minha proteção, acharam por bem mantê-la algum tempo em observação e não havia nada que eu pudesse fazer. Ou talvez houvesse se eu tivesse querido deixa-la ali sozinha e voltar para minha confortável casa. Fiquei. Acho que Ana Lúcia, esse era seu nome, estava meio zonza do susto e começou a me contar sua vidinha banal, tão sem graça e estéril perto da minha. Quando vi, pontuava sua fala com os paralelos, de certa forma mágicos, com os quais minha vida fora brindada. Isso me deu uma angústia que não sei se meu analista teria entendido. Me conhecia desde os seis anos e sabia que eu era a realização absoluta. Acho que pensei de olhos lúcidos, pela primeira vez e enxerguei todo o absurdo vazio e a flacidez de minha alma desfocada. Precisaria dessa mulher para poder compreender o que é ter muito pouco e vastamente ao mesmo tempo para poder viver alguma coisa consistente neste fim de ano esquisito. Decidi que não beberia meu champanhe francês favorito e faria, talvez, uma festa familiar com outra família que não fosse a minha. Os meus não entenderiam nada. 3... Ana Lúcia Saímos da clínica e parecia que tínhamos nos conhecido desde sempre, totalmente entregues a uma conversa sem fim, assemelhada à dança e onde a música era nossa voz e o tom, a nossa experiência neste mundo tão passageiro. Quando entramos naquela rua já estava escuro e não havia ninguém chegando ou saindo, um varrer de vento levara todos para dentro de casa. Não sei por que me arrepiei de medo e soube que todos os demais fins de ano que pudesse ter seriam resolvidos nesta noite e nesta rua que não conhecia. O carro entrou pela contramão com o motorista pisando fundo no acelerador. Yasmin segurou o volante e freou. O outro fez um “cavalo de pau” deixando seu veículo atravessado. O homem saiu com um revolver na mão e eu sabia que era um 38, jamais tinha visto uma arma antes, fora dos filmes e antevi meu último fim de ano. Danielson Foi mesmo sensacional manobrar de forma que o carro se atravessasse na rua e trancasse a passagem das duas mulheres escolhidas para alvo. Saí gritando, é um assalto, é um assalto, bem como vira nos noticiários da televisão. Não, acho que vi em alguma novela de minha mãe que se sentava ao meu lado vestida com sua roupa funerária. Era seda pura, não enterraria minha velha com os trapos que vivera toda a vida. Isso não! Eu a queria bela quando fosse enfrentar o tal São Pedro que se diz porteiro do céu. Ele a vendo assim, cheirosa e penteada, com vestido florido, talvez acreditasse que era uma dama e que educara muito bem o filho que a amara tanto a ponto de não poupar despesas com o caixão e com vinte coroas de flores desfalecidas. Yasmin Senti, ao ver o carro na contramão a toda velocidade, que nosso momento chegara e nem sei como tive presença de espírito em frear ao mesmo tempo em que firmava a direção. O homem saiu gritando, é assalto, é assalto, com um revolver imenso, daqueles que os tiras usam nos filmes de ação e nem era uma bela arma de cabo de madrepérola que me mataria. Foi o que consegui pensar. 2... Ana Lúcia Não sabia mais se estava acontecendo de verdade ou se era um pesadelo. Tudo era surreal demais e lembrei de meus filhos que estariam se enfeitando para a ceia, na certeza que me esmeraria na comida, fazendo parecer que era um banquete. Lembrei-me dos abraços e beijos que trocávamos nesta hora. Meu marido, embora aéreo e distante há dois anos, seria tratado com o mesmo carinho de antes do Alzheimer. Fingiríamos que ele estava entre nós por que sabíamos que seu espírito gostaria disso e se esqueceria do corpo abatido. Logo ouviria o estampido e saberia que acabou o mundo e tudo que eu pudesse ter vivido nele. Danielson Elas deveriam ter dinheiro, talvez joias por que o carro era de madame e a loira tinha um jeito de capa de revista. Seria um bom começo para minha nova carreira e me divertiria muito presenteando minha vagabunda com aquele colar que parecia de verdade. Fui caminhando firme e grosso, bem macho mesmo, em direção ao carro. Foi quando ouvi o sino de alguma maldita igreja e vi minha mãe descer do carro se postando ao meu lado com um chinelo na mão. Nunca tive medo do chinelo dela, eu tinha pernas muito melhores e estava grande, ela não poderia me acertar nem mesmo as cintadas. Comecei a contar as badaladas e pareciam ser contagem regressiva de tempos, talvez minutos, os últimos. Yasmin O homem parou alguns metros à nossa frente, parecia resmungar, ou falar com alguém invisível e, aos poucos levantou a arma para a própria cabeça. Eu não queria morrer, mas, apesar de tudo, não queria que ele morresse e, me lembrei de alguma coisa meio solta e esquecida dentro da cabeça. Talvez um peru, ou pato assado que tinha um aroma de forno, podia ser um peixe ou, mais provável, lagosta, que comi num réveillon largado lá nos anos atrasados e mortos que não voltariam mais. 1! Os três lembraram ao mesmo tempo que tinham celulares. As mulheres ainda tiveram um flash de medo e dúvida. Como poderiam ligar sem que o homem percebesse? Mas exatamente pelo medo e dúvida, não se deram ao trabalho de qualquer mistificação e teclaram o 190, sem hesitação. Nem podiam crer que o homem também ligava e dava notícias de um assalto à telefonista, insistindo muito que daria tempo de evitar se viessem logo. As duas faziam a mesma coisa simultaneamente, como coral ensaiado. Passados alguns minutos ouviram as sirenes, dava a impressão que tinham mandado um exército inteiro pelo estridente e ecoante som. Os três se olharam estupidamente primeiro e depois de uma forma estranhamente fraterna como se fossem velhos conhecidos. A apresentação foi muito rápida, feita enquanto Danielson jogava o revolver numa lixeira, Yasmin soltava os cabelos e os balançava desordenadamente e Ana Lúcia atirava para um canto da rua o maldito relógio que a aprisionara pelos anos todos e mais lembrado ainda nas últimas noites do ano. Cada um teclou o número de alguém ou ninguém que os esperava para a ceia, avisando que estavam presos no trânsito, mas chegariam a tempo, afinal ainda faltavam 4 horas para a meia noite. Entraram rapidamente nos automóveis fazendo sinais de entendimento. Duas ruas depois se sentavam num bar e tomavam guaraná em copo tipo americano, não muito limpo. Apenas Danielson se lembrou de passar na borda um guardanapo de papel para tirar uma mancha de batom que alguma mulher deixara de lembrança e a garçonete distraída não lavara muito bem. O marido não entendia nada mesmo e ficou sem entender, mas os filhos de Ana Lúcia ficaram surpresos ao saber que a mãe tinha reencontrado, como por milagre, velhos amigos de infância que vieram para a ceia daquele ano que seria o zero de suas vidas. Todos os outros anos foram borrões apagados e não voltariam mais, lembrariam deles como uma coisa boa que os empurrara para esta noite, onde o que passou será um aprendizado para que não haja mais finais de ano iguais aos que já foram. Nunca mais ano novo para demarcar coisa alguma, apenas anos que se fariam diariamente ao longo das novas horas que já são velhas depois de um segundo. Assim como eles. Era uma noite quente de verão, com estrelas cintilando forte. Uma delas, como olhos que piscam, tremelicou sua luz e eu pensei que estrelas bem podem ser os olhos de Deus. Vana Comissoli