quarta-feira, 22 de junho de 2011

MACHO MACHO MAN

Gostamos de execrar os grandes, seja indivíduo ou estado. Não é assim que os doloridos de cotovelos fazem? Ah, gentinha descornada que está sempre a olhar o rabo do pavão alheio enquanto banca de peru gorgolejando glu-glus repetitivos e risíveis. É assim... Desviar a atenção ou acautelar-se antes que as metralhadoras se voltem para peitos com quilômetros de ficha corrida ainda sob o tapete lavado a Pinho Sol diário.
Políticos americanos atléticos e bonitões foram “pinçados” enviando fotos para senhorinhas disponíveis e loucas para acreditar que o gatão era livre, leve e solto além de ilustre desconhecido e não manjado pelos repórteres de plantão. Os hakers bisbilhotaram e acharam pratos quentes na bandeja, puseram a boca no mouse, digo, as fotos na Internet, a mais democrática das instituições. Teve renúncia, mea culpa e contrição diante de mulher grávida. Para salvar o pobrezinho rico, afinal era bem apanhado, se não tivesse dado esse quebra pau poderia até pedir “emprestada” a foto dele, pensei: tem mulher que é foda, fica grávida e fecha as pernas, dá merda!
Se a morada virtual das delícias pesca até político americano que considero acima de todos os males e macumbas (vai ver penso que EUA é parecido com o Brasil. Ha, ha, ha...). O que não aconteceria com a raia miúda? O pavor bateu geral. Quantas cabeças mal casadas, ou nem tanto, dão uma “voltinha” para estimular? Quem não sabe que funciona? Se tiver que contar esta história da Carochinha de ser desgraçado, cheio de filho que não pode abandonar, para render horrores de bucetinhas ajoelhadas no altar fálico, a gente enfrenta.
Começou uma troca de email que ultrapassou em adesões todas as correntes do Buda do dinheiro, Anjo da felicidade e de todos os Santos, urgentes ou não. Falei até com chinês, não me pergunta como, mas no desespero a gente entende aramaico. A coisa foi se fundamentando, o pavor crescendo, casamento desmaiando, senhorinhas se enforcando, sei lá mais o que.
Aí explodiu aquela revolta dos bombeiros no Rio de janeiro, 2000 homens, machos prá caramba, se uniram na força da cara e da coragem e foram às ruas, com ídolo do surf e tudo. Deu prisão para um pacote de caras, logo foram libertados. Se esta causa nobre e restrita tinha perdão, notícia em revista, apoio e aclamação, imagina uma causa mundial, alinhavada pela Internet e muito mais justa, até a FTP daria a maior força.
A banda larga, curta, discada ou não, e toda a parafernália comunicativa à mão congestionou. Os relógios fugiram de Greenwich, os despertadores criaram a super hora universal, até os Ets devem ter observado o levante e se interessado. Não vem me dizer que extra terrestre não dá umas puladas de muro que nisso não acredito. Macho é macho em qualquer sistema solar. O Deus não é infinito? Então fez tudo igualzinho, só pequenas diferenças verdes e amarelas, mais nada.
Só não fez notícia retumbante por que tinha repórter, diretor de mídia e até faxineiro de estúdio interessadíssimo no processo e tinha que ser segredo bem guardado senão estragava a eficácia do levante.
Começaram a azeitar as engrenagens com centenas das mais cultas, intelectuais e até científicas cabeças do planeta.
Um feriado sensacional onde tudo pára é o Natal, lançou um cuiabano de nó virado. Claro que não, berrou um italiano circense, e os muçulmanos, judeus, budistas? Vamos deixar os irmãos de fora? Corta essa foi a sonora indignação do moscovita.
No meio da dificuldade de acertos um nordestino arretado, de dedo em riste, este tinha dedo, distribuiu buchada de bode no mundo inteiro. Os moçambicanos adoraram, fazia tempo que não viam uma farra de carne, nem aí se era de bode, vaca ou peru assado. Deu problema, cada um almoçava num horário diferente e a sesta dos gaúchos, mexicanos e afins atrasou os trabalhos. Ficou acertado que não haveria mais acepipes. Só discretos drinques. Discretos, nada de encher a cara que vão dormir no meio dos acertos os do litro e meio. Vieram apupos de todo o lado, de norte a sul, leste e oeste, mas acabaram aceitando em prol da causa.
Em consenso o dia da reivindicação seria 31 de dezembro, e desta vez bateria meia noite no mesmo instante em todo o planetinha. Nada de exclusividade, a chamada à ordem seria geral, quem se insurgisse teria sua foto peladão, a verdadeira, colocada internacionalmente (o internacional foi pequeno deslize, acontece...) na Internet.
Bandeiras foram criadas em preto e branco com um gavião explodindo energia no meio. Artistas plásticos doaram suas criações. Foram tantas que se resolveu fazer várias bandeiras e com isso muitas alas foram criadas: dos machões, dos disfarçados de empresários, dos garis, dos cheios da grana. Muitas especializações. Os mafiosos relutaram em ter uma ala, afinal mostrar a cara não era seu estilo.
Um marqueteiro disse que sem slogan não funcionaria. Problemasso! Até prêmios Nobel entraram no páreo nessa hora. Mais difícil que escolher os “fardões” da Academia Brasileira de Letras. Lapso, esta escolha é fácil, basta ter um QI esquentado por indicações da pesada, gostar de se fantasiar de palhaço e ser chegado em marimbondos de fogo.
Por unanimidade resolveram que deveria ser muito simples. Não eram machos? Macho bastava. Não houve consenso, muito fraca. Lá dos perdidos ventosos da Patagônia, escondida atrás de outras, veio a voz: Dava para ser Macho, macho, man? Acharam “A sacada”. A música homônima passou batido, nem se lembraram dos machos que a rebolavam. Deixa quieto!
A vestimenta seria ao gosto do participante, escolher daria muito pano para manga e em alguns pontos do planeta, faltaria pano, todo mundo sabe, inverno aqui, verão lá. Única exigência é que os escoceses abrissem mão do kilt e os mulçumanos dos vestidões, todo mundo de calça comprida, de macho. Lembraram da roupa que serve a rico e a pobre, de direita, de esquerda e do centro: o jeans. Aplauso geral. Todo mundo de jeans e camisa branca. Branco não, gritou Ling Ching Ling, é cor de luto. Ai, cada passo um impasse, ou cada impasse um passo? Só se fosse para trás. Essa torre de babel é de desgovernar os miolos. Cada um com a camisa que quiser, desde que não tenha desenhos, mangas bufantes ou foto de homem no peito, a sua própria pode.
Afinal, depois de muito é, mas não é, chegou o dia. Já se tinham passado 2 anos, as paqueras estavam frias, as infidelidades discretíssimas e as mulheres desesperadas. As esposas cansadas de tanto dar e as amantes cansadas de não ter para quem dar. A ordem yang-ying do avesso. Haja filosofia para explicar este entre aspas depois! Tremendo trabalho para machos pensantes.
As badaladas do relógio foram contadas no ritmo certo e a mulherada sem entender coisa nenhuma, o peru nem tinha ido para o forno, as calcinhas brancas estavam secando no varal e a homarada toda na rua soltando foguete? O que é isso?
Rio de Janeiro, Tremembé das Almas, Calgary, Cartagena, Glasgow e todas as cidades, conhecidas, desconhecidas, as que se ouve falar muito, as nem tanto, as que nunca se viu no mapa. Em todas, lá estavam os homens com estandartes, palavras de ordem, gritaria, coisa de macho, desfilando pelas ruas, estradas, vielas, campos, planícies geladas, altas montanhas, precipícios e qualquer buraco que exista.
Foi um Deus nos acuda, o levante desta vez foi sensacional, não houve uma só desistência, teve pai que levou bebê de colo, claro que macho. Todo tipo de veículo de carrão até riquichá. Um fato que se tornaria épico.
No calor da hora, fosse inverno ou verão de torrar, os fantásticos se pelaram e aí, sabe-se lá como, já que nenhum macho, masculino homem estava diante do computador, a notícia se espalhou e foi roupa voando para todo lado.
Os machos, mas nem tanto, que não tinham participado da estruturação do evento ficaram doidinhos, quiseram passar a mão, dar uma pegadinha. Foi reação total, nada disso, só podia olhar. Alguns até ficaram entristecidos, sabe como é... Na hora de um aperto...
O sucesso se mostrava estrondoso e os machões já visualizavam a tonelada de emails que receberiam, mulher para escolher, até a Débora Secco chamaria a surfistinha de rol pequeno. Os que se entusiasmavam muito batiam continência, mostravam serviço. Ninguém se incomodou, afinal macho é para isso mesmo. Ficaram orgulhosos dos de sangue quente.
No meio da euforia generalizada, uma mulher pequena, meio e meio, meio quilo, com cara de todo dia, saiu da assistência com rolo da massa na mão. As outras, de olhos puxados, cabeleira carapinha ou loira escorrida, viram aquilo e...
Não saiu notícia no jornal, os tvs ficaram caladinhas, nem pé de página teve.
As mulheres não fizeram levante, não mostraram a bunda, nem reviraram os olhos. Pra que se tinham a única coisa que dobra homem?
Por décadas a Internet teve a mais fiel comunicação inimaginável.






sábado, 18 de junho de 2011

AGONIA

Ela estava completamente nua e branca à sua frente. Sem olhos, sem fala, sem convite para nenhum dos sentidos. Parecia que não tinha alma, nem sabor. Era o momento da agonia de Pedro Navarra.
Talvez se desenhasse hieróglifos houvesse alguma coisa a rotar na brancura sem frestas que fechava todas as possibilidades. Acontece que não era escritor, nem sequer esculpia e muito menos filmava. Era pintor.
A palheta ao lado dormitava tédio. Os pincéis desanimados sobravam todos inertes. De novo Pedro espremeu idéias, a cabeça tão branca quanto a tela à sua frente. Miséria - pensou miseravelmente condoído de si mesmo - pintor tem que pintar todos os dias. As idéias devem fervilhar como chaleira em ebulição, não faz mal que queime, o importante é cozinhar e não em banho-maria.
Ficou parado, a fome se esqueceu dele, os cigarros não, muito menos o vinho que dançava um tinto rock frenético. A inspiração escondida embaixo do sofá, ou queimando na lareira apagada dos pensamentos.
Olhou pelas janelas, o rio andava no passo moroso tão conhecido. Ele partia de si mesmo:
“Adeus, meu amor
Eu vou partir
e já estou saudades a sentir.”
Quem inventou esta bosta de letra para “Tristesse” de Chopin? Que merda! Não sou Chopin e nem sei diferenciar o dó do lá. Só tenho “lá” no fundo um “dó” danado de mim. Esculhambei tudo, perdi a musa, virei a mesa, rasguei a carta, risquei o nome!
Olhou a tela vestida de fantasma, só faltavam as correntes, nem essas ele conseguia enxergar. Talvez se a enchesse de correntes enosadas em si mesmas poderia sair alguma coisa. Bebeu outro copo de vinho como se toma água, a vertigem entrou no sangue, tremeu as bases, viajou na maionese.
A tela inchou, se contorceu, foi nascendo... Nasceu escultura. Monstro marinho de sete cabeças, enroscado e enroscando as pernas, os braço, pescoço, grito preso, socorro desmaiado.
Logo a peça uniu barro sobre barro e 20 000 léguas submarinas surgiram absurdamente possíveis quando tal mergulho é impossível quimera. Foi um festim de formas que nasciam e renasciam sem parar, criaram um Mágico de Oz voluptuoso e incansável, atravessando versos onde verso não tinha. Cala-te Gyl Ferrys, quem te chamou aqui? E o homem sofrendo seus poemas como se fosse Pedro o inspirador, soando na cabeça, fazendo revelações irreveláveis.

“Esse ser mecânico que sou,
Movido a paixão e de amor,
Anda enlaçado pelos punhos,
Desde o início do mês Junho,
Atado a uma penosa solidão...

Homem-de-lata-robô eu sou.
Ando à procura de um coração...

Atirou-se sobre a tela pronto a desmascará-la. Feito nulo, desejo esvoaçante. Ela voou sobre ele, prendeu-se no teto, encolheu o chão. Virou filme do avesso e era Benjamin Button, com sua cara sem tirar nem por, que saltou velho e permanentemente velho, a juventude sem chegar nem mesmo ao contrário. Canto chão: filme agora não. Agora não.
Quem ouve gemidos, batidos de vento, soando orvalho, se desfazendo lá dentro?
Dom Quixote de unha quebrada, cabeleira esvoaçando, descuidado tambor. Logo outro qualquer voltando ao futuro ou de onde quiser, que futuro não há em verso sem rima, vomitado e não parido como se nascer da boca fosse possível em uma sina.
Jogou-se no ar, pegou fios, machucou as mãos, arrebentou telas, todas já pintadas, o grande arista, pelo chão espalhadas. Coloridíssimas, espirrando tinta. Obras pollockianas com redes de linhas coloridos entrelaçados, transparências desviando a atenção para o fundo do quadro. Não podia ver o fundo do fundo, agora podia e não queria, feia cena de gritos e murros.
Monstros criados pelo viés da imaginação o levavam às profundezas desalmadas. Caiu mosca na sopa, entupiu o ralo, a azeitona da empada fez revoada no estômago, olhou para o lado e viu que a tela só falaria com ele se usasse palavras.
Amargou direto, buscou a forma, duas dimensões contidas, abriu a porta, soou sino, bateu na lata, criou tino que se perdeu na escada.
Dormiu no chão, sonhou cavalos montando ventos, cortou as asas, virou galo, quebrou a crista, ficou banguela, sofreu as dores, perdeu os amores, conchinhas emborcadas de nada, ficou absurdo, surtou maluco, saiu da fossa, respirou fundo.
Virou escritor.

domingo, 12 de junho de 2011

Alice... Quem foi que disse?


Alice não era do tipo que aparece, marca presença, pelo contrário, passava despercebida, ausente estando ali o tempo todo. Treino para quando virasse fantasma, ninguém vê, nem ouve, mas está ali. As pessoas comentando, fazendo de conta que ela não escutaria. Só ela sabia que escutava numa considerável distância, uma linguagem bem pouco conhecida e sem significado.
“Como a Alice é boazinha!”, “A Alice é um doce de pessoa”. Pontualmente a velha arrematava: “E é muito prendada.” Essa era a parte mais irritante. Ficava imaginando se dissessem: “A Alice é uma boba, dá palpite até no que não sabe”. A velha diria: “É, mas muito prendada”. Sabe-se lá por que ela fazia uma associação dos infernos, prendada era prenda atada. Ela era uma prenda atada a não sabia o que. Melhor treinar para fantasma. Distanciava-se do mundo brilhante demais, barulhento demais, incompreensível demais.
Será que fantasma, espírito, ou coisa que o valha também ouviria comentários? Os espíritas diziam que sim, mas não importava, ela via fantasmas de vez em quando, assustavam, se acostumou aos poucos, agora passavam e só. Luzes, brilhos, sons.
O que diriam dela? Uma folha morta? Um cogumelo de pernas? Se fosse surda em vida, talvez fosse surda depois da morte também, pelo menos não ouviria comentários nem que era muito prendada. Quais seriam as prendas de um fantasma? Teceria teias voláteis como os pensamentos? Vestidos de gaze tecidos com o orvalho da manhã que viram sonho ao sol? Essas elucubrações não preocupavam Alice, nem as tinha, mas enchiam de dúvidas a cabeça da mãe dela.
Vieram as férias, sabia que eram férias por que entraram no carro e andaram... Andaram... Não chegava nunca e é desassossegado ficar tanto tempo sentada sem uma linha nas mãos, sem espaço. As estradas são barulhentas e desconhecidas, um medo alucinado tomava conta dela obrigando-a a gritar, espernear a ponto de sua mãe prendê-la no banco, ou ampará-la no colo até que dormisse. Chegaram, após muitos cafés e pastéis. Essa era parte boa, ninguém tirava a comida de sua mão, podia brincar com ela jogando no chão e voltar a pegá-la engolindo sofregamente. A mãe olhava para o lado e fazia de conta que não via nada. Ficava mais complicado entender razões, no momento era bom.
Teve certeza que eram férias embora não entendesse o que deixava os pais tão sorridentes se tudo era igual, pelo menos para ela, nem sabia bem o que eram férias, coisa aérea e que não se pode tocar, nem por na boca. As linhas não muito coloridas estariam ao alcance da mão e podia, como sempre, fazer longas e frouxas tranças com elas. Depois a mãe inventava usos secundários como por na cintura ou prender os cabelos. Era quando a velha espiava e dizia: Como Alice é prendada! Não era bom vê-la revirando os olhos enquanto falava, podiam saltar e fugir chão a fora até trombarem com a porta..
Respirou fundo por que o cheiro do ar vinha volitando sal, gostava desse odor ardido embora no início machucasse um pouco. Olhou a casa abrindo primeiro um olho e depois o outro, não dava para fazer tanta coisa de uma só vez, amedrontava. A casa onde estacionaram tinha porta de sorriso e janelas tremendo, o portão grunhia, outro fantasma a enfrentar, até que se acostumasse.
Não saiu no dia seguinte, não podia e não esperavam isso dela. Tudo tem que ser aos poucos, a caixa de Pandora, se aberta abruptamente solta perigosos monstros, mas tem fadas e duendes se nos acostumarmos às frestas. Ela se acostuma aos poucos com tudo, na estrada se anda passo a passo.
Foram à praia, o mar é aquele engolidor terrível que ruge até na calmaria, o pai deu a mão e, lentamente foi aprendendo que não seria engolida de supetão. Cuidado, um pé, depois o outro e o mar se acalma, embala, refresca os temores.
Começou a sair sozinha, as férias criaram essa qualidade, podia ir para onde quisesse e não a barravam, foi assim...
O rapazinho estava sentado navegando o mar com os olhos. Não mexia nem um dedo, por isso Alice não teve medo, ia caminhando sem pressa e tiquetaqueou vontade de compartilhar a silenciosa espera dele. Esperaria a coragem chegar como ela esperava ou estava se acostumando com o mar? Não tinha respostas por não ter perguntas. Tampouco sabia se podia sentar ao lado dele ajudando na espera, então sentou. O rapazinho não se incomodou, não disse o nome, nem perguntou nada, a velha estava longe, sem observações sobre como Alice era prendada. Provavelmente o jovem não se encantaria com isso, tornou-o mais próximo.
Ia todas as tardes sentar-se ao lado dele, na convivência calada de navegar o mar, acostumar-se com a imensidão do céu, sabiam as mesmas coisas e por isso as palavras eram confetes desnecessários. No silêncio não há medo, o sorriso do rapaz dava certeza de que ele também sabia disso. Com ele aprendeu a defender-se do sol: a mão em aba olhando as águas sem que o movimento a perturbasse.
Nunca estivera tão confortavelmente próxima de alguém, alguma parte adormecida de sua alma acordou e ela balbuciou a primeira palavra. Já ouvira tantas vezes, mas ninguém entenderia se tentasse dizê-la: mar. Todas as formas muito grandes passaram a ser mar. Ninguém compreendeu de onde saíra, mas aprenderam que era enorme. O que parecia grande diminuiu e seu mundo se ampliou com isso.
Logo aprendeu outras coisas no silêncio tão fácil de se aprender. Um estranho prazer no peito que fazia sorrir. O rapazinho sorria e ela também. Segredos foram ditos alheios de sons. O primeiro amor desabrochou na areia desenhada pelas águas em ondas suaves.
No recôndito do peito, sem que nem por que uma vez desnecessário, bateu emoção que cavalgou sentimento. Os dias se tornaram um só sentada ao lado daquele que tomara o espaço de todos em sua vida. Quando o sol procurava casaco para a brisa da noite não se acomodar nos ombros, ela se despedia gentilmente: mar e ia embora navegando por dentro na grande descoberta.
Chegou à casa e assustou-se com os barulhos e movimentos, mexiam em tudo, trouxeram para o meio da sala as mesmas caixas de guardar que antes tinham desguardado. No dia seguinte, entre fúria e arrastos embarcaram no carro. Andaram... Andaram. Desta vez os pastéis não aliviaram a cansativa e desnorteante prisão, de alguma forma sabia que o menino não se afastaria do mar para segui-la. Como poderia encontrá-lo depois que o caminho do mar se tornasse desconhecido?
Esperou nos dias, sonhou nas noites, mas ele não veio lhe dizer que esperava pelo encontro. Se esquece tudo, Alice também esqueceu. Novamente houve aquela quebra na calmaria conhecida e novamente, roupas e tralhas foram escondidas nas malas. Novamente veio a estrada longa, cheia de pastéis. Deu-se conta que iam ao mar, ficou quieta, esperou. Voltaria ao encontro marcado de todos os dias, nem sequer titubeou na dúvida que ele não estaria sentado a navegar o mar. Era o destino do rapaz e ninguém foge ao seu destino.
Não esperou por nada, fugiu com força da mão que a segurava, correu para a praia, seu pensamente não se esquecer do lugar e nem de como chegar. Lá estava ele sorrindo, navegando sem barco, sonhando estrelas, a mão resguardando os olhos da luz e do rocio. Tem momentos que cumprimentos se tornam vazios de sentido, sabemos que não houve ausência, apenas saudade.
Queria ficar ali, sentada ao lado do rapaz, cuidando que a água não os levasse para aquele ponto onde tudo deixa de ser visto. Teve coragem mar e passou o braço pelas costas dele que não se furtou. A decisão foi tomada sem pensar sobre ela, pensamento não existem quando a gente quer de verdade. Como faria para permanecer também não se questionou, ficaria e era assim.
Os pais se preocuparam, foi um corre-corre e vizinhos ajudando. Caíra a noite e Alice com seu medo do escuro não aparecia. Espanto, grave preocupação. Foi Gabriel, o velho pescador que conhecia aquelas paragens desde garoto que encontrou. Como contar? Melhor no ligeirão antes das lágrimas fazerem rios na sua cara.
- Ela está lá... Fria e sorrindo, abraçada na estátua do menino do mar.

domingo, 5 de junho de 2011

CACHORRADA




Tudo bagunçado outra vez! É entrar em casa sabendo que sapatos estarão rodopiando pela sala, alguma coisa roída na cozinha e cheiro de sono no ar. Dá um cansaço!
Meus ruídos despertam sono pesado e logo verei o olhar imperativo de “não me machuque”. Impossível resistir apesar de saber que é errado ceder, o chefe da matilha deve ser eu. Logo em seguida sentirei a onda de carinho, as palavras que mal compreendo resumidas a sons repetitivos. Já estou acostumada, fui eu que escolhi, sem possibilidade de reclamar. Ainda sou dos antigamente quando se era fiel à palavra empenhada, à cara com vergonha, a coca-cola de garrafa, não descartável. Então...

O que se faz de noite? Ela é tão longa, se estende pelos trilhos das horas sem estação de chegada antes do amanhecer. Inverter horários... Ora bolas! Quem liga? Uns são do dia, outros são da noite, isto é estatístico, eu li num pedaço de revista qualquer na sala de um psiquiatra qualquer. Tudo é um qualquer na minha vida, não tem muita diferença uma coisa da outra. Momentos.
Esperar... Odeio esperar, as revistas são sempre antigas e eu tenho um bolo indigesto na barriga que me morde o tempo todo. De noite tenho que esperar o dia de dormir chegar. Dormir... Nem sei se gosto. Meu notebook está à disposição, outro tipo de viagem, um pouco menos avassaladora, mas ainda assim... O tempo passa, passa sem passar nunca, a vontade de sair pelas ruas sem rumo e com rumo certo, é tudo que preciso segurar. A ansiedade que têm minhas pernas para andar e agora estou preso aqui neste apartamento sem portas. Estou sozinho na noite desta casa que finjo que conheço e com estes cheiros de gente sadia que me persegue sem trégua.
Sou um peixe fora d’água desesperado para submergir no mundo que me domina. Telefone... Telefone também ajuda. Não me preocupo se ligar para a Colômbia ou o Marrocos é caro ou não, minha mãe paga tudo que preciso, é o dever dela que me fez inválido e deformado. Ela fez e eu pago o pato. Que sacanagem!
Atirar-me no sofá ou da sacada é tudo a mesma coisa. Eu jurei não me jogar mais, isso foi há 3 meses atrás, já passou a validade. No supermercado os produtos perdem a validade, estou exposto para compra e venda, também perco a validade que não me vale de nada.
Um intruso tilinta meus pensamentos... Vieste novamente me visitar? Como és lindo! Contigo tudo será mais fácil e ter-te nos braços me fará desejar viver.
Ai, que medo. Me desentenderás como todo mundo? Exigirás que seja medíocre e vulgar? Não, claro que não. És tão jovem, te torcerei e retorcerei até que desta vez não reste pedra sobre pedra de ti e serás assim completamente meu. O amor que nunca tive. Amarás o que eu amo e nunca mais me sentirei perdido. Se doerá? Talvez um pouco. Eu me torço todos os dias, acabou que acostumei. Fico triste? Fluoxetina. Eufórico? Lítio. Agressivo? Qual qualquer coisa as pessoas chamam de agressividade, mas eu li que é muito melhor esvaziar. Quebrar uma cadeira tirando lascas da parede é pouco para o vulcão que vez em quando sempre entra em erupção dentro de mim. Casa sem cadeiras é charme, meus amigos adoram as almofadas pelo chão e agora o vizinho não tem barulho para encher os ouvidos de minha avó quando ela vem. E vem demais, no controle o diabo da velha, traz dinheiro então aguento. Sou um artista, é difícil ganhar. O mundo não está pronto para minha arte e tenho pouco tempo de realizá-la, tantas coisas para fazer... Banho, escovação de dentes, roupas para levar na lavanderia, comida pronta boa, não tem em qualquer lugar. A vida às vezes é um estorvo.
Se eu vou te machucar? Ora... Que besteira, claro que não! Eu te amo. Vamos brigar de vez em quando. Normal, né? Fico brabo, muito brabo, mas sempre com razão... Se não me deixam dormir, se me obrigam a comer, se minhas necessidades ficam à deriva. Só preciso de amor o resto é tudo invencionice. Confia em mim, eu te amo. Amo, amo, amo. Transbordo de amor por ti. Claro que já amei antes, mas nunca tinha ficado noivo, é a primeira vez. Te liguei por que tua voz é minha seiva, meu pão, meu mel... Tudo de bom que eu possa imaginar. Doce bala de coco. Sei que é tua primeira vez, serei cuidadoso, te ensinarei com paciência, conheço minhas responsabilidades por um amor tão puro. Uma pequena dor é tempero delicioso, aos poucos descobrirás o prazer da dor. No sexo deslumbrante que te apresentarei, ela te mostrará toda a sua majestade. Acima de tudo confia em mim, sou vivido. Se soubesses quantas rodas já enfrentei! Saí ileso, juro. Sempre alguma cicatriz resta. Normal, né?
Me dá uma raiva esta distância! Esbofetearei a puta da minha mãe que me obrigou a voltar, se não fosse isso estaríamos enroscadinhos. Espera, está entrando uma ligação.
Oi, amor! Claro que não te esqueci, sabes que sempre terás meu abraço para ti, vazio de ti. Volto logo, semana que vem. Só o tempo de visitar meu pai, faz 5 anos que não o vejo. Talvez não vá, me disseram que está numa profunda com a cocaína, não posso me expor. Não, não usei, eu juro. Morrendo de saudades! Olha, entrou outra ligação. Beijos, te amo.
Voltei. Meus créditos estão no fim, amanhã aviso minha mãe e poderemos falar de novo, nunca é o suficiente. Sim, só tenho a ti. Que desconfiança boba. Repito: tens que confiar em mim, és meu e sou teu. Que pergunta é essa? Nãããooo! Claro que nunca usei drogas, são o mal em vida. Beijos e beijos.
O dia amanhece, comerei alguma coisa para dormir. Não posso fazer barulho algum. De que jeito se vai à cozinha sem fazer barulho? Impossível! Ela já dormiu bastante, não fará mal dar uma acordada, afinal é do dia. Gente do dia sim faz barulho demais, incomoda meu sono, não há respeito neste mundo. Será que vai me despachar? Não incomodo nada. Esses meus pensamentos negativos, não darei ouvidos, estou bem, muito bem.

Sempre me preparo para encontrar as coisas como não eram antes dele vir, desorganizadas e sujas. Fuxica nos vasos, come as plantas... O que fui inventar? E lá vem ele abando o rabo, se alisando em minhas pernas, latindo alegremente. Como se pode ver emoções no latido de um cachorro. Eu o trouxe, perturba, mas aprendi a amá-lo até que cresça e se acalme. Não demora muito, quem demora e às vezes não cresce nunca é gente.

CANSAÇO




O amor está cansado
vivem nele desastres aéreos
mortes sem fim de guerras apátridas
holocausto e hibernações.
está como fruta madura
quando cai do pé, morre.
está no fim de seus dias
Os quatro cavalos, há milhares de anos
Batem cascos.
Não vicejam mais os campos
Os rios morrem de sede
Os mares cospem seu desespero e sua solidão.
As terras se contorcem em desertos
igual meu coração
Porque, cheio de medo e pavor
o amor fugiu do mundo.
Buscou, em todas galáxias
a salvação
O universo não tem piedade.
Porque a teria, se na Terra seu fruto apodrece?
Porque teria se exauriu seu sumo até o fim?
Houve vozes
Que, ainda hoje, ecoam no Infinito
alguns a regurgitam
como se pasto fosse
Não quero regurgitar
quero voltar no tempo
mesmo que tenha que vomitar
a dor que causei
Olho ainda o Infinito
e peço clemência
por tanto que me doei à dor
que me circundava.
Vendida, aflita por preço tão vil
eu te peço Amor,
não permita que eu também te abandone.
O amor clama por integridade.

Vana Comissoli