sexta-feira, 27 de abril de 2012

CONSTATAÇÃO

Sílvio Luiz explodiu. Fez “BUM!” e foi pedaço para todo lado provocando abalo na calçada a ponto das árvores correrem a se esconder atrás dos homens que não acharam buraco onde se enfiar. Uma nuvem amarelenta e atômica cobriu tudo, depositando pó de enxofre sobre os veículos e se acumulando no meio fio. Ali perto uma mulher tentava se recuperar do abalo. Fazia mais ou menos uns quarenta anos que vinha enfiando pela goela todo o lixo emocional que conseguia extrair das pessoas: Querelas de vizinhos que quebravam muros e se esbofeteavam para depois beberem juntos ao perdão e a justificativa tão cabível de que o inferno era a Mayara ou a linguaruda do 51; Cachorro latindo sem parar na madrugada de seus despertares; gatos no cio se esvaindo em gozo sonoro e agudo; Lixo espalhado na calçada, motorista energúmeno desaforando pelas ruas; A insuperável barreira de escandalosos silêncios entre ele e Sara. Deitou irritado por ter que dormir com a vagabunda daquela mulher que já tivera olhos rasgados e glamorosos, ou ternos, nem lembrava direito como eram, apenas que o puxavam num elástico cada vez mais curto. Agora ela estava ali com a garganta ressonando floreios de flauta enquanto ele queria comê-la, ou tê-la, quem sabe até mesmo matá-la desde que não sentisse mais desejo algum. Imagina tudo isso reprimido e depois não queria explodir como um balão estufado? Eu queria que houvesse uma terceira via, pensou de repente e lembrou que talvez conseguisse sentir a mesma coisa pela nirvânica vizinha da esquina, sempre tão sozinha e convidando para o cafezinho que ele nunca tomava. Mas... Mas não tinha vontade alguma por aquela facilidade que se expunha sem nem pedir. Seria isso que o brecava? Nem era parecida com nenhuma das mulheres que tivera, muito menos com Sara. Mantinha-se o padrão... Bobagem! Tivera louras, morenas, castanhas, gordinhas e magras demais, não existia isso de padrão. Se as coisas acabavam sempre do mesmo jeito e pelo mesmo motivo era apenas uma triste, incômoda e imbecil coincidência. As pessoas, principalmente as mulheres, obviamente os homens não conseguiam tão boa performance teatral, deveriam trazer tatuado na testa e nas pálpebras o aviso de: cuidado, queima, para se saber que não eram boa bisca e em dois toques nos corneariam apesar de todas as juras e lágrimas escorridas de rímel com a boca manchada de batom sabor gordura. Para muito além dali, do outro lado da cama, a mulher dormia e sonhava que não tinha jurado amor eterno e podia escapulir pela janela do sótão mesmo arriscando quebrar o pescoço. Como seria bom que os homens, esses hipócritas, carregassem um cartaz bem grande pendurado no pescoço onde se leria em letras garrafais: cuidado, perigo de explosão. Ou veneno seria mais acertado? Por que vivê-los era tomar um miligrama de cicuta diária. “Eu estava abdicando de mim mesmo. Opção minha para agradá-la e manter todo aquele mundo intacto dentro de um espaço onde coubesse apenas eu e ela”. - Isso sim era uma aberração, gritava Sílvio Luiz chamuscado pela explosão recente. “Eu estava abdicando de mim mesma. Opção minha para agradá-lo e manter todo aquele mundo intacto dentro de um espaço onde coubessem todas as coisas sem nos tirar lascas”. – Isso sim era uma total incapacidade de se desenvolver e esta página virada de que mulher tem que se adaptar ao seu santo macho, nem nos seus mais carentes momentos suportaria. Sílvio Luiz resolveu dar um tempo para explicações, precisava delas senão teria que dar um tiro na cabeça se sentindo um merda incapaz. Fez-se de indagador de si mesmo como quem escarafuncha um jardim cheio de inço. Foi mesmo quando? No sonho do ano passado? Ou seria neste mesmo? “Não é o amor o meu problema. Sou eu, meu medo de rejeição que me impede de ser eu mesmo e me amoldo aos outros para ver se tomo tento e assento para sempre num único lugar que não se acabe. Colecionar frustrações até explodir só me dará apenas a certeza de que falhei”. Dizem que os sonhos são os caminhos inconscientes que se abrem, sonhou a mulher que dormia ao lado do homem bomba. Ela era difícil, sabia, ora estava tudo tão bom e ora havia tantos homens maravilhosos elogiando seus cabelos macios, coisa que ele não fazia mais e sentia tanta falta. Se mostrava e, para sua surpresa recebia elogios açucarados que adoçavam os ouvidos, a alma e a vida tão besta enferrujada num minúsculo mundo onde cabia apenas ele e ela. O sonho deu um salto e agora caminhava num castelo cheio de portas onde todas se abriam para quartos vazios, menos uma que não conseguia destrancar e trazia o nome dele gravado. Raios de sonho, pensou dentro do sonho. Ambos somos terríveis, sentenciou Sílvio Luiz enquanto alisava os cabelos macios que chegava até a doer de tão bonitos. Se dissesse isso, provavelmente ela o chamaria de mentiroso e piegas. Só em pensar ser piegas tinha torções estomacais violentas. Coisa mais sem sustentação ser ridiculamente sentimental, também o chamaria de boiola e perderia toda a hombridade num sorriso satisfeito por ela estar gostando disso. Não e não. E a princesa do castelo se olhou no espelho dando uma risada que só as bruxas têm e a cara verdadeira com verruga no nariz e tudo, apareceu. Odiava sonhar, tomara não lembrasse de nada ao acordar. Agora passeava vestido de pato, os passos balouçantes a torna-lo ridículo. Então não vi solução, exceto a ruptura. Me sinto um cocô ao ceder e ela nem me pediu pra explicar. Acho que amava uma imagem criada e me encaixei nela para tê-la, queria um "cafajeste", dos que somem por um tempo. Complicou-me, dizer as coisas melosas todas e depois sair sem aviso para que ela sentisse a enorme falta que eu fazia. Não queria ser a namoradinha que cuida de mim, que tem afinidade de gostos, queria ser a minha vagabunda. Sei lá que imagem de macho tem na cabeça e me enrolei de uma forma que a quero desesperadamente e a odeio por que me destrói. Se não a tivesse conhecido eu não saberia o que realmente quero, ainda não sei. Que foda! Assim não quero e de outro jeito quero? Se não gostar também? Sara, no enevoado do sono, percebendo difusamente movimentos ao lado que não sabia explicar ou localizar com precisão, pensou: "Amor próprio é o único que não acaba". Ela sabia que já tinha acabado. Teria preferido algo mais cinematográfico, ela indo embora num dia de chuva. O problema que sentiria um frio danado e ele talvez batesse a porta e não se importasse com a tremenda gripe iminente. Amar uma imagem é muito chato para o imaginado porque a gente cansa e quer voltar para si mesmo. E Sílvio amou alguém que não sou eu por que não gosto desta meleca toda que preciso fazer para que goste de mim. Passeava de mãos dadas com ele, ela sendo apenas uma enorme foto em preto e branco. Nem sequer colorida? A sensação de Sílvio Luiz era de que não estava pensando, ou sonhando sozinho e não sabia que estado era esse. Talvez sonambulismo. Parecia mesmo que era acordado por que podia ver a luz de cabeceira sonolentamente debruçada no travesseiro. Um final meio "Casablanca", era a única maneira de acabar uma tórrida paixão. Ele se derretia, ou explodia, parece que não, a explosão já se fora e agora apenas derretia sob o calor do efeito. Ele tinha feito uma imagem dela tão perfeita! A gente gosta dos gran finale, das apoteoses, mas não existem e fica tudo chocho sem seguimento ou possibilidade de novo capítulo. O diretor acenava que tinham que recomeçar, corromperam o script! – berrava do lado de fora da jaula. - E apesar disso não acaba aqui. Eu sigo. Eu vivo. E não poderei explodir por que arrasaria com o quarteirão. – Fez um gesto de entendimento e olhou o texto de letras borradas, esquecera todas as falas. Talvez tenha sido apenas um jogo de interesses, mesmo que eu não saiba qual, definiu Sara antes de virar-se para o lado da parede, levando junto o lençol de flores miúdas de que gostava tanto. Sílvio sentiu um puxão na coberta que expôs a lateral da coxa e trouxe-a para o lugar certo. De manhã o lençol estava rasgado ao meio, Sara cobria-se precariamente, o frio provocando uma posição quase fetal. Sílvio Luiz tinha apenas o peito coberto, com fiapos de pano se esgarçando pelo ventre. Tocou o despertador, ambos saltaram da cama e, como nos últimos tempos, fizeram desjejuns completamente diferentes, cada qual mergulhado em seu jornal ou revista preferido. A única coisa em comum era o café preto, puro, sem açúcar que encerrava a refeição, as mãos se encaminharam ao bule simultaneamente sem que os olhos acompanhassem o gesto. Foi assim que aconteceu a colisão dos dedos e um arco voltaico se formou. O arco ocorreu em um espaço preenchido de gás altamente combustível entre os dois e isto resultou em uma temperatura muito elevada, capaz de fundir ou vaporizar virtualmente qualquer coisa, até as mágoas e os desfechos. A copa vibrou enquanto as dores e as palavras ásperas se transformaram numa poeira cósmica que enveredou porta a fora em direção a um rabo de cometa. As xícaras se esfacelaram ao serem expulsas de sobre a mesa quando os corpos se inclinaram um sobre o outro como na primeira vez, com a diferença que estavam com a cara lavada da manhã e não haviam tido o cuidado de colocar as máscaras. Surpreendentemente tinham um cheiro delicioso e um toque indelével guardado na memória. Sara ainda tentou dizer: - ...eu sonhei... Vana Comissoli

terça-feira, 24 de abril de 2012

DE TANTA PENA QUE DÁ

Puxou a cadeira e sentou-se. As pernas largadas, os pés plantados no chão, o corpo escorregando pelo assento, em dissonância. Não pediu, mas o garçom colocou à sua frente uísque com gelo e uma garrafa de água mineral. Não levantou os olhos, mas sabia que Ronaldo, o dono da boate, estaria controlando a quantidade de bebida no copo. O trato era muita água, pouco álcool. Mulher com bafo não está com nada, a casa é de bem, recebe homens de nível. Josias, o garçom, voltou ao balcão, encostando-se e dispôs-se a observá-la: a pele de cor brasileira com olheiras lembrando lagos roxo sob os olhos não combinam com o vestido verde brilhante que lhe deixa metade das coxas à mostra. Do jeito que está sentada, se fizer a volta, pegando-a pela frente, Josias enxergará o entre-pernas. Diz um colega que ela não usa calcinhas e não se importa em mostrar tudo. É sacana a Marise, faz isso, mas não dá para qualquer um, só pagando. Para eles, colegas de trabalho, não dá nem pagando. Por que mostra então? A bolsinha de alça comprida foi aberta e um maço de cigarros longos e finos apareceu. É uma bolsa dourada, de malha metálica, cabe o cigarro, o isqueiro e a chave solta. Algumas camisinhas apertam-se no fundo. As sandálias, também douradas, revelam as unhas dos artelhos coloridas de vermelho escuro. Tem uma correntinha em volta do tornozelo. Josias fixa os olhos na corrente reconhecendo que o enfeite é um tesão. Será que gosta de masoquismo, essa daí? Sorri, antecipando em sonhos o que jamais terá coragem de fazer. Os cabelos crespos estão presos por um pente espanholado numa volta caprichosa e a orelha exposta tem uma argola de falso ouro. É um mulherão e que bunda tem! Josias coça os bagos disfarçadamente, graças a Deus não chegou nenhum cliente para as mesas que serve. Marise acende o cigarro. “Porra de noite, não estou nem um pouco a fim. Ronaldo desgraçado, não dá folga e vem com história de descontar falta. Ainda esfrego uma sífilis na cara dele de tanto usar a coisa.” Sopra a fumaça para o alto, como viu no filme “Gilda”. Era um filme muito velho que assistira por acaso na TV, num vício de ligá-la mal entrasse no apartamento. Gostavam de passar esses filmes nas madrugadas, os insones assistiam qualquer coisa que assemelhasse companhia. Rita Hayworth cantava languidamente e apaixonava todos os homens da casa noturna, quando ela se dispunha a desligar o aparelho. Ligou-se na cena e foi até o fim, Gilda era uma figura e tanto, caía como luva no tipo físico dela. No dia seguinte comprou pentes e passadores para prender um lado do cabelo, cortou-os pouco abaixo dos ombros. Pouco a pouco, na medida da lembrança, copiou os vestidos da personagem, sabia que não eram muito modernos, mas a sensualidade da figura seduzia. Seu trabalho também não era muito moderno. Levanta a mão e faz um sinal para que Josias se aproxime. Deixa a voz soar alta quando pede outra dose, hoje pagará, está de folga, resolve neste instante. O garçom relanceou os olhos para o patrão, fazer o quê? A diaba ainda passa a língua nos lábios vermelhos. Ronaldo afasta-se de seu posto e vem em direção a eles, o pescoço impulsionando a cabeça para frente como um aríete. − O que está acontecendo aqui? Motim? − Não Ro, − a voz de Marise é ondulante, os olhos se rasgam numa demorada vistoria da abertura da calça do homem − estou nas regras. Hoje sou cliente. Ninguém resiste à Gilda. Ronaldo passa a mão nos cabelos, relanceia os olhos pela casa vazia nessa terça-feira de bosta e volta para seu lugar grunhindo : − Está bem, melhor dinheiro de puta que dinheiro nenhum. Josias enche o copo deixando o “choro” da bebida alongar. Marise sorri e passa, de leve, a unha pelas costas da mão dele, a garrafa dá uma pequena tremida e alguns pingos de uísque molham a mesa. − Desculpe. Já limpo. − A voz do garçom é hesitante. Marise sorri como uma lambida, sem revelar a constatação: Josias é um bolha. Bonzinho bobão. Faz uma semana que começou a trabalhar na casa, tem um ar perdido e um titubear ocupa a boca. A camisa levemente encardida escorrega as mangas para fora do paletó escovado, de cinco em cinco minutos, ajeita a gravata borboleta teimosa em voar de lado no seu colarinho. Um perfeito panaca. A música resvala nas cadeiras vazias, um e outro cliente entra. Poucos casais escondem-se nas mesas de canto. Duas moças chegam juntas e sentam-se separadas. Marise fecha a cara quando um sujeito grande fixa nela olhos de convite. Já estipulou o feriado, nem sabe como Ronaldo concordou tão fácil. Toma três doses seguidas, até um torpor amortecer os lábios. “Agora vai devagar”, completa o copo com água mineral. Josias acompanha os gestos da mulher, de todas é a preferida, transpira certa ausência que dá vontade de preencher, parece obrigada a estar ali. Vê quando se levanta um pouco vacilante e dirige-se ao banheiro carregando a bolsinha dourada, vai retocar o batom com certeza. Pena estar nos dias, não adianta ficar na frente da cadeira, estará de calcinha hoje. Melhor olhar assim, de revés, pode vigiar seus movimentos e enxergar a bunda fugindo da cadeira. A porta do banheiro fecha-se atrás dela. Respira fundo. Fixa o espelho que toma conta de toda a parede em cima da pia. Já foi casa fina até sair de moda. Retoca o batom, empoa o rosto e espirra perfume adocicado embaixo do cabelo. Têm guardadas, numa das gavetas do armário embaixo da pia, essas ferramentas. As moças do lugar são proprietárias de gavetas. Ronaldo faz questão da aparência: mercadoria empoeirada e desleixada não vende bem. Levanta o vestido, senta no vaso. Ri satisfeita. O barulho da urina cachoeirando. Abre novamente a gaveta e tira um pequeno embrulho de papel branco, observa com ar entendido o pó que contém. A pedra da pia serve. Enfileira e aspira tapando uma das narinas, fecha os olhos, volta a sorrir. A vida é boa. Talvez saia dali e encontre um cara gostoso de levar para cama. Trepar é o melhor da vida. − Demora no banheiro. Será que passa mal? − Josias preocupa-se, ela parecia tão solitária, essas mulheres são infelizes. Quem pode ser feliz nessa vida? Desgraçada falta de dinheiro, a gente vende a alma por causa dele. Elas também. Afinal Marise sai. Um sorriso parado, doído de se ver perturba o rosto. Os pensamentos correm dentro de Josias. − Tirar a moça daqui... Quem sabe um dia? Garanto que gostaria. – Um nojo, toma conta dele, o mesmo que sentia quando pequeno e a mãe o levava para beijar o Senhor morto na sexta-feira da paixão. Ronaldo observa Marise voltando para mesa. “A filha da puta já se chapou. Qualquer dia terei que carregar a vaca para um hospital. Hoje não me meto, está de folga. Ai que tente fazer em dia de trabalho, ponho porta a fora.” Gosta da Marise, é chamativa, bonitona mesmo, não é novinha, não tem chiliques, faz das suas sem escândalo. Entrou na profissão com consciência, não choraminga fingindo que é obrigada. Nunca se deitou com ele, não faz mal, é até melhor. As outras, enquanto não conseguem não sossegam, depois enchem o saco imaginando que são patroas só porque deram o rabo. Já é bem tarde. Marise vê Josias olhando para ela. Podia levá-lo para casa, brincar um pouquinho, chama-o com o dedo. Antes se apruma na cadeira, deixando, no entanto, os ombros caírem e os olhos se fecharem num traço melancólico. Ele se aproxima. Ela está tão triste. Vida desgraçada! − Josias, preciso ir, não me sinto bem. Será que podes me acompanhar? O pedido pega-o de surpresa. Ele, o privilegiado? O peito enche-se de expectativa. Passou a mão nos cabelos que caíam sobre a testa, alisou a boca, pena ter raspado o bigode. − Será uma honra, saio em meia hora. Podes contar comigo. − Logo vi, Jô, logo vi. - A mão dela é macia, acarinha a dele. Ronaldo sacode a cabeça. Marise é danada, quem olha para ela agora morre de pena, mas ele sabe: vai brincar com o rapaz. Faz um sinal safado para ela que responde num olhar de volteio. O apartamento é um conjugado exíguo, mas está limpo. Um sofá cama embaixo da janela, onde a cortina listada de azul e laranja balança à brisa da madrugada. Uma pequena mesa, um vaso de flores artificiais centra-se nela. A cozinha é a pia com fogão de duas bocas em cima. Sobre ele um armário de portas de vidro guarda louças de desenhos azuis: dois ou três pratos, duas xícaras, alguns copos, uma garrafa de uísque. Fora isso apenas a porta do banheiro. Uma prateleira com os mais variados enfeites. Um surpreendente quadro a óleo: o nu de uma negra de seios avantajados e boca à Di Cavalcanti. Josias senta-se. Veste camiseta de propaganda e calça de brim que deixou a cor nas muitas lavadas que sofreu. − Toma café, Jô? Ele adora essa mania dela de abreviar os nomes, gostava de vê-la chamar o patrão de Ro, nunca pensou que pudesse merecer essa consideração. − Café seria bom.  Responde indireto. Ela desencava uma cafeteira elétrica e logo o cheiro do café passando mistura-se ao perfume doce que impregna tudo  Tu és caprichosa, tua casa cheira bem.  Limpo toda semana e depois ponho perfume num tubo de desodorante e borrifo.  É do jeito que eu imaginava. Marise sacode os ombros faceira, se fosse diferente ele também gostaria. Ela sabe disso. Estão sentados lado a lado, ele se apaixona aos poucos, ou já chegou apaixonado? O leve cheiro de suor saindo dela dá vontade de pegá-la no colo, mergulhar a cabeça nos seus cabelos. Tinha razão o Roberto Carlos em cantar os caracóis de seus cabelos. Cantarola. Marise revira os olhos colocando as mãos no coração e sacudindo o corpo no compasso. Daqui a pouco ele atacará de bolero, aposto comigo um brilho da pesada, pensa começando a impacientar-se. O que mais incomoda é ter perdido a vontade de trepar, o desgraçado parece que vai quebrar-se. Como é branco, chega a dar aflição. Do fundo das lembranças, a figura de um cãozinho sarnento, volta. “Pobrezinho do Lelé, está doente, ficar vivo é só para sofrer”. Ouviu durante alguns dias, depois o Lelé sumiu. De noite, um resto de conversa, entre as tias: − ... é de tanta pena que dá. Pobre Lelé.  Sabe, Marise, entendo que precises fazer essa vida. A sobrevivência está barra, pra mulher é ainda mais difícil. Vou te salvar dessa miséria, não é por pena, gosto de ti de verdade. Era só o que me faltava, ela pensa enquanto espanta a figura do cachorro. Com olhos baixos, puxa a barra da saia em direção aos joelhos, joga longe as sandálias douradas. Os brincos já estão abandonados sobre a mesinha. − O doido é salvador dos pobres e oprimidos. − Dá uma fungada e esfrega os olhos, desacomoda-se, o sofá apequenou-se. Josias ajoelha-se na frente da mulher. Pega suas mãos.  Por favor, não chores, não aguento te ver sofrer. Por um instante, ela o vê. A testa lisa, desprevenida, os olhos redondos de cachorrinho, as mãos que tremem e suam segurando as suas. Suam como o focinho do Lelé quando lambia as mãos dela, o acariciava escondido porque sarna pega em gente. Fragilidade também pega?  É verdade, Jô, dá pena mesmo. Um suspiro acompanha a afirmativa. Josias sorri, ela se entrega, qualquer um pode ver. É a noite mais importante de sua vida.  Amanhã avisamos o Ronaldo que não irás mais. Marise não acredita no que está ouvindo. Será que não percebe o brinquedo? Será que ainda existe brinquedo? Este estupor que sente no peito é de mentira também? Envolve a cabeça do rapaz, ele deita em seu peito. A mulher sente-lhe o latejar das têmporas. Josias a beija no colo, um beijo de lábios fechados, em seguida levanta os olhos brilhantes de umidade. Que posso fazer, pensa Marise, enchendo-se de quase remorso. Deito-me com ele? Faço qualquer coisa para fechar esses olhos, dói na gente uma criatura assim desprevenida. − Minha querida, te comprarei vestido de noiva e teremos lua-de-mel. Marise pega seu rosto entre as mãos e beija-lhe a boca, a língua desbravadora abrindo os dentes a mão encaminha-se para o sexo que encontra murcho.  Não é hora ainda, amor. Vamos casar, saberei te respeitar. A voz de Josias é como um acalanto e fere. Ela se levanta, procura com avidez o pó branco libertador, arruma uma carreira sobre o tampo da mesa. Lá fora começa a amanhecer. A gosma cinzenta da manhã custa a penetrar o breu da noite. Aspira a cocaína. Mais uma dose que o momento exige.  Que estás fazendo, querida?  Me drogo, Jô. Não sabias?  Não te culpes, é a vida miserável. Disso também te libertarei.  Tu não existes, Jô.  Marise se lembra de filmes da madrugada, espichados e melosos.  Existo prá ti.  Vem até a janela, olha o dia, a cidade, junto comigo. − Abre a cortina e debruça-se no parapeito ajoelhada sobre o sofá. Ele a segue, coloca o braço sobre seus ombros.  Que vês lá embaixo, Jô? - A voz dela está ansiosa, deseja que responda que vê uma cidade prestes a despertar enquanto quer dormir, o sol machuca os olhos e a luz cansa.  Vejo nosso futuro onde viveremos felizes.  A voz cintila.  Isso não é possível. As pessoas são cruéis, tudo é cruel. Somos puros demais para elas. Melhor que casar, Jô, que é uma situação que se acaba, é morrer juntos. É o casamento eterno.  Tropeça um pouco nas palavras, arrastando o ridículo da situação.  Não fales assim! Juntos mudaremos tudo.  Josias abraça-a com sofreguidão, tapa-lhe os olhos numa tentativa de fazê-la enxergar o que ele vê.  Por favor, meu querido,  ela beija-lhe os lábios  tu disseste que me amas. Farias qualquer coisa por mim? Josias sacode afirmativamente a cabeça, acarinhando o rosto onde a maquiagem já derreteu e pequenas rugas aparecem acusativas. O cabelo de Gilda revela-se fosco e desbotado.  Vamos morrer juntos. Eu te suplico. Ele estremece. Estou ouvindo direito? Ela realmente está dando sua vida para mim?  Tu e eu? Marise sacode a cabeça numa afirmação. Fica em pé no sofá, ele a segue.  Espera, quero morrer bonita. Vai para o banheiro e refaz a maquiagem. Ele espia enquanto pentea o cabelo com as mãos, estica a camiseta. Ela pede licença, fecha a porta. Ergue os olhos para um velho crucifixo escondido atrás da porta, coisa de se ver em hora de aflição. O homem pregado nele desperta uma pena danada. Será que foi de pena que fizeram esta ferida nas costelas? Devia estar sofrendo muito, o pobrezinho. Cheira de novo. Sai revigorada. Voltam ao sofá de mãos dadas, ficam em pé no assento, beijam-se e olham a rua. O sol é uma bola vermelha. Prenúncio. As nuvens amortecendo a cor refletida no topo dos prédios, reverberando tons nos cabelos de Marise. A madrugada cedeu espaço para a glória. Ela sobe no peitoril da janela. Ele também.  Larga minha mão, Jô. Quero que nossas mãos se encontrem em pleno vôo e precisamos rezar para que nossas almas não se percam.  Eu preferiria que fôssemos de mãos dadas. O tom é levemente choroso.  Estarei contigo. Não tenhas medo porque eu não tenho. Vai! Os braços de Marise são de aço e o corpo magro dele não demora a desequilibrar-se. Ela consegue ver os olhos de surpresa e aceitação antes que o corpo dê uma volta sobre si mesmo e inicie a queda vertiginosa, as mãos agarrando-se no ar, na luz já amarelando. Marise desce da janela, acompanha o balé desordenado de Josias. Por fim fecha os vidros e corre as cortinas. Prepara outra carreira de pó. − Tanta pena que dá! Aspira. Vana Comissoli
DELICADEZA
Sussurro da brisa na folha do outono Arrepio na água, pele sem contorno Fiapo de espuma na ponta do dedo Perfume de lavanda nos lençóis do encontro Aceno lento num adeus longo Balançar do galho pela flor Silêncio de piano ao longe Nota final da melodia Fina iguaria Carinho de unha em teu braço Camisola de cetim na espera O lilás no horizonte Chuva fina de manhã Calor das cobertas no corpo nu Toque no bico do seio Chá de jasmim na porcelana Tinir de cristal no vinho do cálice Teu convite expresso apenas nos olhos Imagem que ficou O aceite para depois de amanhã Vana Comissoli

domingo, 15 de abril de 2012

CARNE E SANGUE



Padre Jeremias se arrastou ao altar sentindo-se fraco e angustiado, negava que fosse algum mal do espírito que tantas vezes o atormentara com visões de acontecimentos futuros próximos. Isso é tentação do demônio e esconjurava:
"Pé de pato
Pé de pinto,
Quem sobrou
que vá pros quintos"
Em seguida batia na boca por de novo ter vindo à mente o esconjuro de sua infância. Não tinha jeito, o tinhoso se enfiava até em suas lembranças, passava por cima da exaltação da Igreja e...
“Eu juro e te desconjuro.
Vai-tiarré, Cruz! Pé de Pato!
Sai daqui raça ruim,
Mais levado do diabo!”
Parece que hoje estava pior, seu estômago embrulhara-se de tal forma que não via a hora de botar o dedo na goela e vomitar todas as tripas que estivessem se contorcendo. Ainda mais terrível era a certeza de que algo infernal aconteceria naquela que deveria ser a missa relaxante do fim-de-tarde.
Arrepiado, erguendo os olhos a cada ruído mais intenso foi levando até chegar a hora da Eucaristia quando deveria esquecer tudo e todos, inclusive os medos e principalmente as superstições. Sentir a transubstanciação de um pequeno e banal biscoito sem graça no corpo e sangue de Nosso Senhor. Era a apoteose da missa, seu significado dogmático e inquestionável. A aparência permaneceria de pão e vinho, porém a substância se modificaria, passaria a ser o próprio Corpo e Sangue de Cristo. Nada da bobagem incrédula de outros ramos dissidentes de falar em símbolo. Símbolo o escambau! Era sangue e carne!
Houve tempo, em que era infantil que pensara, provavelmente endemoniado, que milagres não acontecem assim... no ligeirão, diante de nossos olhos. Sentiu o toque divino da fé quando leu São João Crisóstomo: “Com efeito, o que é o pão? É o corpo de Cristo. E em que se transformam aqueles que o recebem? No corpo de Cristo; não muitos corpos, mas um só corpo. De fato, tal como o pão é um só apesar de constituído por muitos grãos, e estes, embora não se vejam, todavia estão no pão, de tal modo que a sua diferença desapareceu devido à sua perfeita e recíproca fusão, assim também nós estamos unidos reciprocamente entre nós e, todos juntos, com Cristo”.
João Paulo II ensinou que a desagregação enraizada na humanidade é contraposta à força geradora de unidade do corpo de Cristo. Portanto... Sem questionamentos bastardos e herdados de magos e bruxas a quem interessava possuir o poder. A Igreja não se interessava pelo poder, mas sim na união como nos primeiros tempos. A sabedoria herdada diretamente do Cristo pela Igreja Católica era o arrimo e a esperança do mundo e estava em suas mãos.
"E, tomando um pão, tendo dado graças, o partiu e lhes deu, dizendo:
Isto é o meu corpo oferecido por vós; fazei isto em memória de mim.
De forma semelhante, depois de cear, tomou o cálice, dizendo:
Este é o cálice da Nova Aliança no meu sangue derramado em favor de vós”.
Que droga! Hoje a concentração não estava boa. Será que ainda tenho um biscoito na mão ou, apesar de minha inconstância, se deu o milagre prometido? Fechou os olhos e engoliu a hóstia. Esperou alguns segundos para que a Verdade se fizesse dentro dele...
O maligno saiu de sua cabeça sob a forma de seres vermelhos, alados e chifrudos, riam e ele ficou lívido. Sua pouca fé se materializava à sua volta, ou seria apenas uma tentação como Jesus também viveu no deserto? Vencerei satanás, pensou e virou-se para a fila de pessoas à espera da comunhão. Foi um sacrifício palpável e de vez em quando era obrigado a espantar os pequenos demônios que teimavam em aterrissar sobre seus ombros, sobre o cálice tantas vezes sagrado. Vencer o demônio era seu intuito e esbravejou esconjuros poderosos que a todos estremeceu. Era justo que assim fosse, pois de todos saiam diabos particulares enraizados em suas mentes e corações.
Seu exorcismo atingiu as mais profundas fendas do inferno por que, a cada comungando, foi dado o dom e gritavam se jogando sobre aqueles que não comungaram, tentando esgoelá-los, alguns testemunharam visões dos santos, outros abraçaram o crucifixo.
Saia Satã, Mefistófeles, Belzebu, Azazel, Azarape, Cabrunco, Cão, Canhoto, Capa-Verde, Capeta, Capiroto, Chifrudo, Coisa-Ruim, Cramulhão, Crinado, Danado, Demo, Dos Quintos, Encardido, Espírito-de-Porco, Excomungado, Ferra-Brás, Indesejado, Lá de baixo, Mau, Mefisto, Pastor Negro, Pé-de-Bode, Pé-Preto, Pedro Botelho, Peneireiro, Príncipe, Rei ou Senhor das Trevas, Príncipe, Rei ou Senhor dos Infernos, Rabo-de-Seta, Rabudo, Ranheta, Renegado, Sarnento, Satanás, Sete-peles, Temba, Tinhoso, Tranca-Rua, Zarapelho...
Nenhum foi esquecido e já as velas eram derrubadas do altar e o fogo se espalhou rápido pela sacristia, subindo nos bancos e no púlpito. Queimavam os confessionários, as rameiras ocultas se despiam e jogavam-se nuas e enlouquecidas nas chamas mais ardentes. Os infames, lanhavam a cara e gritavam seus pecados e mea culpa, os ordinários se escondiam nos cantos de onde as chamas cavalgadas pelos demônios os expulsava.
- Esconjuro o bicho do ciúme, escuro, negro, que tenta apanhar-me fragilizada e tomar conta do território. És uma mascote, cão raivoso, não és o chefe da matilha, eu te esconjuro.
- Esconjuro o bicho da posse, que não permito que reja mares que o ultrapassam na sua beleza, na sua profundidade, no seu balanço hipnótico, nas suas águas furiosas. Afoga-te nelas!
- Esconjuro o bicho do despeito, devorador das orlas das emoções generosas que só precisam de si mesmas para se regenerar.
O padre corria a avivar o fogo, o inferno tinha vindo resgatar seus moradores que se fossem todos nas chamas, seu lugar. Em alguns momentos, átimos, em que conseguia ver com os olhos que tivera antes desta demonstração da ira do Senhor, sabia que as chamas eram apenas espirituais e todos ali se purificavam e sairiam ovelhas brancas e celestiais, quiçá anjos.
“Não se adora, não se crê senão aquilo que se teme; todas as crianças olham para o céu com indiferença; mas estruja o trovão e elas tremerão, irão se esconder.”
Assim era hoje a Verdade dentro de uma singela igreja perdida no mundo, mas Deus não escolhe lugares, escolhe homens de fé que queiram segui-lo com ardor. Jeremias, fiel a seu mandato, salvou à custa de mãos de fogo as hóstias restantes e no tumulto da paixão, agradeceu a cuidadosa prevenção das irmãs que nunca baixavam o estoque.
Saiu à rua, os cabelos tisnados, as vestes semi cozidas e empurrou goela a baixo hóstias de redenção dizia entre soluços e lágrimas de gratidão ao senhor.
Pavor e estranheza consegue arrebatar as mentes mais lúcidas e os ensinamentos escamoteados voltam à tona em toda sua força: os medos, a escuridão, impotência, fragilidade e submissão primal. É a hora do homem diante da incompreensão do Cosmos e seu pedido de socorro é agudo e desesperado. Todos engolem a hóstia consagrada para logo em seguida os diabos internos assolarem sem pudor, transformando homens em assassinos, estupradores, viciados, negros olhos olhando seu negror interno.
A festança maligna durou cerca de duas horas se é que alguém, dentro ou fora da igreja se lembrou de olhar o caminho dos ponteiros.
A noite ia já a passos largos quando o que sobrou dos homens, crentes ou não, aplacou o ensandecido Purificador e adormeceu-os atirados pelo chão como se animais fossem.
Do Vaticano vieram nomes nobilíssimos a fim de estudar e encontrar, fosse como fosse, uma explicação para o acontecimento que, na certa, tinha sido arquitetado para denegrir o Santo nome. Um feito simples, rápido e eficiente:
“Ao invés de farinha normal, hóstias foram produzidas com uma farinha alucinógena, que teve efeito imediato. E por isso, no último domingo, na igreja do Santo Espírito de Campobasso, na região central da Itália, desencadeou-se o caos”.
“Foi apurado que se tratou de um caso de ergotismo, uma intoxicação alimentar causada por farinhas de cereais contaminadas por esclerócios que atingem a safra do grão. Os organismos microscópicos contêm uma grande quantidade de fungos, perigosos para a saúde, entre os quais costumam se encontrar muitos agentes psicotrópicos, parecidos com o ácido lisérgico, ou LSD”.
“Segundo resultado das análises a farinha utilizada para produzir as hóstias foi contaminada por estes agentes, capazes de provocar uma reação alucinógena em menos de um minuto”.
O Santo Padre leu o relatório e chamou os mais altos bispos para o exorcismo máximo da Igreja.


Vana Comissoli

quarta-feira, 11 de abril de 2012

TIREM-ME DAQUI!




Em Nome de Deus Clemente Misericordioso
Que a paz esteja convosco

Em qualquer lugar do mundo o trabalho campesino é rude e duro, feito para pessoas simples em quem o contato com a terra é uma extensão de si mesmo. Tudo que precisam conhecer da vida a natureza ensina e talvez saibam viver melhor do que os letrados e pernósticos intelectuais do concreto.
Shamim não era diferente de seus vizinhos, pouco estudo, pouco tempo para grandes pensamentos. Sua fé era a mesma que herdara dos pais, que herdaram dos pais, que herdaram... Para que perguntas sobre isso? Tem todas as respostas nas maçãs que amadurecem, na aspereza do solo exigente que dá em troca de esforço um perfume frutado ao peito reconhecido. Deus não é mesmo isso? Somos fiéis, fazemos o trabalho que Ele nos deu com afinco e prazer e... Pronto, recompensa. Não tem nada a reclamar de Deus. Tudo que acontece é fato da vida assim como os pássaros voam, as plantas crescem, chove quando tem que chover e o homem é mau quando tem que ser.
Neste dia levantou quando mal saia o sol a espiar a terra paquistanesa. O sol não sabe a quem alimenta, não entende de muçulmanos ou cristãos, tanto uns como outros precisam dele do mesmo jeito, assim como de água, alimento e sono. Não foram as regras criadas por Deus indistintamente? É o que Shamim sem pensar, pensa, está dentro dela. Têm vizinhas que adoram Maomé, mas batem roupa no rio exatamente como ela, gritam pelos filhos, fazem segundo a mesma receita, o pakora e as deliciosas samosas. A única diferença é na hora de rezar, Shamim não tem horário, a maioria dos habitantes da pequena aldeia tem.
Alzubra, Azzah, Ghayda e todas as outras se ajoelham longe dos maridos para orar "lá onde a terra pouco verdeia, para não se perder na areia, tem sempre a luz da candeia, do archote de Maomé". O silêncio verde do Islã cala até a boca dos cachorros, dizem...
Shamim observa, é cristã, aqui na “terra dos puros”. - Pak deriva do persa e significa “puro”, e Stan, “terra”. Não convém espiar nesta hora, mas é teimosa, não se importa que seja um grão de areia neste mundo islâmico. Jesus veio para todos e a Lei da Sharia também, não há defesa contra a blasfêmia do olhar, no entanto até os cristãos arrefeceram este peso não de ser com ela, perdida nesta terra pedregosa que se voltará a ira. Não entende de estado laico ou vinculado à uma religião, são ideias tão longínquas quanto imaginar um mundo onde as mulheres não estejam atrás de um véu.
No seu mais secreto íntimo deduzia com convicção: "Cristo morreu na cruz pelos pecados da humanidade"; que sacrifício Maomé havia feito pelas pessoas? Até as matara e em seu nome muitas e muitas mais. Na própria aldeia tinham havido julgamentos rápidos e eficientes em cortar mãos e o açoite é um objeto abominável e íntimo. Que ninguém a ouvisse, recorreriam ao imame local, esposo de uma das amigas, e a denunciariam à polícia pelo delito de blasfêmia. O artigo 295 do Código Penal do Paquistão determina pena de morte para quem blasfemar contra o Profeta do Islão. Teriam os pensamentos soado alto demais? Atravessado a espessa fumaça de seu cérebro?
Cresceram juntas, casaram com os maridos a quem foram destinadas, tiveram filhos na mesma época, mas Shamim, cinco vezes por dia é a estranha. Tentam convencê-la a aceitar a fé islâmica segundo manda a "Jihad Menor”. Ela ouve, treme um pouco, há tantas histórias! E de uns tempos para cá parece que houve um aumento nas diferenças e não trocam receitas e risinhos com a mesma frequência. Mas não... As amigas, quase irmãs, não fariam nada contra ela.
Após a Salát Assobh, a oração da manhã, vão ao poço buscar água, conversando faceiras enquanto puxam os véus para esconder a boca. As casas não tem água e não há estranhamento nisso. Há bastante para todos no poço.
Shamim crê que serve ao Deus vivo e que, por isso, não há razão para negar o cristianismo e virar uma muçulmana. Não há razão para medo, será consolada pelo Senhor. Desconhece que desde o dia em que deixou escapar ou talvez não tenha escapado nada, só pensado intensamente, algo sobre a igualdade das fés todos a consideraram uma blasfema.
Habibah coloca seu jarro na beirada do reservatório e vira-se para continuar a conversa ininterrupta que as mulheres adoram. São descuidadas nesta hora, nenhum homem à vista, os maridos estão no campo e os filhos nas escolas. É a sua hora, talvez mais sagrada do que qualquer das sagradas horas de oração, mas isso nem elas, nem Shamim sabem. O jarro balança um pouco, mal assentado e o gesto espontâneo faz com que Shamim corra a segurá-lo. O alvoroço é geral:
- Não toca! Impura, infiel, vais conspurcar a água de minha família.
- Só fui segurar para não cair e quebrar. Não toquei na água, está vazio ainda.
Habibah toma o pote e lança-o ao chão, está perdido, sujo e violado. Allah é Deus e Maomé o seu profeta, foi determinado que uma impura não blasfeme se opondo às suas leis.
No dia seguinte, seus vizinhos foram à polícia e relataram que Shamin fez comentários depreciativos contra Maomé. A ira de Deus é menos poderosa que a ira do homem contra aquele que blasfema sobre seu deus.
Por mais que o homem queira, Deus não mudará Seu caminho que foi feito à imagem e semelhança do homem e nestas paragens, os caminhos estão escritos no Alcorão.

Vana Comissoli

sábado, 7 de abril de 2012

VIA SACRA

Josué desceu do ônibus dando graças a deus por afinal estar a quatro quarteirões de sua cama. Estava cada vez mais difícil ter paciência de aturar o cheiro de gente, as palavras vazias ou ásperas de todos em torno. Uma hora e dez, às vezes vinte deste convívio forçado e espremido era muito mais do que um cristão poderia aguentar para salvar sua alma. Às vezes ficava repetindo internamente “Vão para o inferno, desgraçados!” como uma espécie de mantra ou conta de ovelhinhas antes de dormir. Distraía e parava de ouvir a tagarelice de vizinhos desconhecidos aproximados apenas pelo mesmo penar dentro do coletivo.
- Vão para o inferno, desgraçados! – Vão para o inferno, uma vez. Vão para o inferno, duas vezes. Vão para o ...
O ar da rua refrescado pela garoa era uma espécie de batismo bendito que o aproximava da bem aventurança. Aquela tão suplicada nos cultos e prometida nos cultos do pastor Elias todos os domingos dedicados ao Senhor conforme recentemente recebera em sua vida. Esperança, esperança, esperança.
Gritos atravessaram as calçadas, gritos próximos e múltiplos. Tencionou-se. Eram prenúncio de perigo na favela, tiroteio dos traficantes ou invasão da polícia. Sempre perigosos para quem não tinha nada nem com um, nem com outro e procurava viver despercebido até o dia que fosse chamado a uma vida melhor que, tinha certeza, chegaria. Esperança prometida, regras cumpridas á risca para merecê-la, até o cigarro largara, baseado nem para refresco. Pelo menos era o que sua mãe de mãos esfoladas pelo tanque e sabão ininterruptos, falava de olhos postos no crucifixo pendurado meio capenga em cima da porta de entrada para abençoar a casa e aos que saíam ou chegavam. Não importava muito em qual dos casos, desde que tivessem sempre presente que eram filhos de deus e um dia, sabe-se lá quando, seriam resgatados da favela. Josué gostava dos amigos, da funk e das peladas, mas desde que os políticos resolveram perseguir o tráfico, as coisas ficaram pesadas e a vontade de ir embora bateu na porta com força.
Ouviu os tiros e se grudou na parede de cabeça baixa, correndo com a pasta de plástico cobrindo a cabeça como se fosse um escudo anti bala perdida, fazia de conta que era para a chuva miúda numa tentativa de diminuir o medo que podia paralisá-lo em vez de fazê-lo correr o mais que pudesse. Quando dobrou a esquina a movimentação era bem maior do que o esperado, todo mundo corria e um quase menino estava estendido no chão imóvel. Uma mulher desmaiava nos braços de alguém, ou fazia quê, já que gritava alucinada: meu filho! Meu filho!
Quatorze quadras para chegar em casa, estava acostumado a contar os passos, distraía a tensão e quem sabe impediria de ouvir os tiros e os gritos. Felizmente parece que estavam mais para cima e não à esquerda, direção que seguiria.
- Foi ele! Foi ele!
A voz berrou e em seguida alguém lhe passou uma rasteira fazendo com que caísse de cara no chão, um fio de sangue escorrendo do nariz que tinha batido de jeito no meio fio.
A partir daí tudo se transformou num grande pesadelo, uma leve visão de sacrifício passando rapidamente pela cabeça. “Te esconjuro!”
- Foi ele, eu vi! Reconheço o moletom e o capuz pretos. Foi ele que atirou.
A multidão enlouquecida pela sede de sangue, punição, esperança de centenas de anos, também reconheceu. Até os que nunca o tinham visto acusaram o reconhecimento e urravam: Também vi, foi ele. Deve ter a arma ainda. Está sempre armado este desinfeliz, eu vi!
A sorte se acabou ali. Que sorte? Esperança de sorte.
Meia dizia de homens suados, molhados pela chuva, cheirando a roupa suja, caíram sobre ele, amarrando-lhe os pulsos e os pés, mas de modo que ainda pudesse andar. Levantaram-no puxando pelos cabelos, rasgando o capuz e empurraram-no em direção à subida íngreme, sentido contrário e torto de sua casa. Pedras soltas na via o fizeram tropeçar, andava sem enxergar direito e não conseguia se lembrar das palavras do pastor embora procurasse febrilmente no cérebro entorpecido por xingamentos e impropérios. “Seu filho do diabo, filho de puta e outras verdades que tais”.
Caiu batendo os beiços que racharam e sangraram, uma dor aguda e estrondosa comprovou a perda do dente que não lembrou de cuspir e nem sabe se engoliu. Alguns chutes fizeram com que entendesse que era preciso levantar e que, talvez isso fosse sua salvação, já vira gente morrer pisoteada na estripulia de fugir dos alvoroços agora quase constantes na favela. As autoridades tinham se decidido a limpar o ambiente dando segurança aos moradores. Todos tiveram esperança e fé que isso seria uma bênção. Era uma questão de tempo, depois tudo seria paz e dias de sol, a alma renovada pela saída da bandidagem com seus atos demoníacos que visavam apenas o próprio umbigo. Um novo tempo, uma nova ideia de vida.
Compreendia a direção a seguir pela turba que abria caminho para ele, até parecia uma procissão. As ideias começavam a se organizar e ele pensava que era filho de deus e seria salvo deste inferno de loucos e desenfreados. Foi assim que resolveu anunciar:
- Não fui seu, sou filho de deus. Ele é meu pai assim como seu!
Alguma coisa deu errado por que choveram pedras e uma delas encontrou certo o caminho do olhos que fechou a meio.
Uma mulher abria caminho aos prantos, arrancando os cabelos e afinal reconheceu como sua mãe, ou talvez tenha ouvido seus chamados.
- Josué, meu filho. Que fizeste? Nada fizeste. Este é Josué. Estão enganados.
A esta altura estava estropiado e cego, entortava o caminho, pensava nos ovos de Páscoa que ainda precisava comprar para os primos e para neguinha Madalena de sorriso largo e branco. Madalena dos braços macios e colo exposto aos seus carinhos, jurando amor eterno que a ele se daria por toda a vida.
Viu que a mãe caía e alguém a recolheu nos braços. Seria o pastor? Levou-a do burburinho e pensou que talvez os pés balançando fosse a última coisa que visse da mãe. Lamentava em meio ao caos de conexão mental não ter ficado mais tempo com ela ao invés de ter corrido a soltar pipas. Sentar ao lado do tanque ouvindo as histórias de santos e anjos que ela gostava tanto de contar apesar do pastor dizer que não existiam. Mas eram apenas histórias e ela pecava no segredo da casa. Como menino era justo que quisesse mais sair com os amigos atrás de descobertas que repartiria com enlevo, do que ver mãe batendo roupa sob o sol.
Lá de trás veio um vozerio e todo mundo parou. Parece que o BOPE estava derramando mais polícia, alguns até se escafederam e seu amigo Jonas com um olhar que apertou o coração de ver, tanta piedade tinha, passou seu pano de mecânico pelo rosto dele, limpando ou sujando um pouco, mas pelo menos não correu mais sangue da testa o que abriu a visão e melhor não ter aberto já que se deu conta muito bem do que estava para acontecer. Já vira antes. Aonde mesmo?
O pessoal do BOPE tinha outras ocupações e os favelados desgranidos que cuidassem de suas turras, não era traficante e eles não se metiam na arruaça, essa era a regra: deixa o pessoal resolver suas pendengas, a missão é pegar bandido, o povo é trabalhador e do bem. Foi assim que o grupo continuou caminho inchado de gente a cada metro.
Josué não viu quando jogaram uma galinha morta retirada do ebó dos exus. Tropeçou na bicha e se enrolou em seus pés fazendo-o cair pela segunda vez. Bem de seu lado ouviu a saudação e teve certeza que estes nomes não se deve dizer, razão tinha o pastor, eram do demônio e traziam má sorte:
- Laroyê, Exu! "Exu, em ti confio. Leva meus medos embora, Compadre".
Continuou ouvindo como uma ladainha e no fundo nem achou tão dos infernos por que lhe deu uma impossível calma, parecia até que pediam por ele, tivesse fé e coragem que tudo terminaria em pizza com um olho roxo, sem um dente e um monte de escoriações dolorosas, mas passariam. Esperança, não morres nunca.
Ninguém o juntou, mas levantou assim mesmo, enxergava já o terreno baldio do alto da favela, quem sabe não quereriam se encher de pega-pega e apenas o largassem por lá aliviados dos pecados e felizes com a justiça.
Estavam bem na frente da casa de Sá Matilde com as meninas todas saindo meio peladas para assistir o desfile, até parecia cantor de funk chegando para a balada e isso não era fato de se perder. Quando viu Ritinha nem sabe bem como, no meio delas, com sua cara de vaca com sono sentiu um aperto no peito, até ontem brincava com sua irmã com as bonecas de trapos que a mãe costurava. Os olhos dela tinham um jeito estranho e parece até que corria água deles. As palavras saíram meio atropeladas ou bêbadas sem que pudesse brecá-las e não sabia que elas existiam dentro dele até ouvi-las:
- Não te preocupa, Ritinha, não chora. Um dia eu subirei até aqui de novo e te tirarei desta vida de pecados, és só uma guriazinha, teu coração é puro, mostra isso prá todo mundo, mesmo que tenhas que abrir as pernas todas as horas do teu dia.
Mal terminou de falar e alguém deu um passa pé que o desabou novamente. Estava tão pesado, devia ser cansaço do dia trabalhado, estava acostumado a dor no cangote, se parecia maior era por que não pudera se atirar na frente da TV como todos os dias enquanto mastigava o bom e conhecido sanduiche de mortadela.
Chegaram ao descampado e alguém o derrubou para lhe tirar os tênis quase novos e até as roupas todas, cada um carregando uma peça. O frio da chuva que se tornara gelada pela noite, arrepiou sua pele e então, só então se deu conta do pavor que o dominava.
Tinha que acontecer isso tudo, este pesadelo, bem na véspera dos feriados? Teria três dias para descansar até começar, no domingo a se preparar para a nova e eterna semana que sempre voltava.
Vacilou quando viu a árvore seca bem no meio do terreno, meio chamuscada pelo fogo, onde assaram o Nei das Trincas ao trair o Chefe embolsando alguns gramas de pó. Foi nela que o prenderam e parecia estarem enterrando alguma coisa em suas mãos para que não pudesse se soltar. Com o que seria que doía tanto? Precisavam também prender os pés? Ele não teria forças para caminhar nem dois passos, não fugiria, isso era desnecessário.
Já estava tudo turvo e mesmo que virassem as costas, deu-se conta que não conseguiria sair dali, queria mesmo era se atirar no chão, dormir com a chuva aliviando a dor que o queimava. O pastor era um desgraçado, tinha dito que ele era filho de deus. Onde estava o tal deus nessa hora? Por que não vinha com seus anjos salvá-lo daquele inferno? Melhor que não viesse, talvez morrer fosse não sentir nada, talvez a morte fosse a verdadeira salvação e foi assim que se entregou. Não estava sentindo mais nada quando Zé Pretinho o espetou com o canivete.
No dia seguinte saiu notícia no jornal com foto e tudo sobre o massacre da favela e o povo todo se persignou. Tinha isso que acontecer bem na Páscoa? E se... E se...
Povo é povo, houve até romaria por via das dúvidas, algumas mulheres levaram flores que puseram junto à árvore queimada. Muito tempo depois elas estavam lá como no dia em que foram depositadas e ele passou a ser chamado de santo milagroso já que a flores não morriam.
Eram sempre-vivas, tem a mesma aparência por todo o sempre até que virem pó.

Vana Comissoli