sábado, 7 de abril de 2012

VIA SACRA

Josué desceu do ônibus dando graças a deus por afinal estar a quatro quarteirões de sua cama. Estava cada vez mais difícil ter paciência de aturar o cheiro de gente, as palavras vazias ou ásperas de todos em torno. Uma hora e dez, às vezes vinte deste convívio forçado e espremido era muito mais do que um cristão poderia aguentar para salvar sua alma. Às vezes ficava repetindo internamente “Vão para o inferno, desgraçados!” como uma espécie de mantra ou conta de ovelhinhas antes de dormir. Distraía e parava de ouvir a tagarelice de vizinhos desconhecidos aproximados apenas pelo mesmo penar dentro do coletivo.
- Vão para o inferno, desgraçados! – Vão para o inferno, uma vez. Vão para o inferno, duas vezes. Vão para o ...
O ar da rua refrescado pela garoa era uma espécie de batismo bendito que o aproximava da bem aventurança. Aquela tão suplicada nos cultos e prometida nos cultos do pastor Elias todos os domingos dedicados ao Senhor conforme recentemente recebera em sua vida. Esperança, esperança, esperança.
Gritos atravessaram as calçadas, gritos próximos e múltiplos. Tencionou-se. Eram prenúncio de perigo na favela, tiroteio dos traficantes ou invasão da polícia. Sempre perigosos para quem não tinha nada nem com um, nem com outro e procurava viver despercebido até o dia que fosse chamado a uma vida melhor que, tinha certeza, chegaria. Esperança prometida, regras cumpridas á risca para merecê-la, até o cigarro largara, baseado nem para refresco. Pelo menos era o que sua mãe de mãos esfoladas pelo tanque e sabão ininterruptos, falava de olhos postos no crucifixo pendurado meio capenga em cima da porta de entrada para abençoar a casa e aos que saíam ou chegavam. Não importava muito em qual dos casos, desde que tivessem sempre presente que eram filhos de deus e um dia, sabe-se lá quando, seriam resgatados da favela. Josué gostava dos amigos, da funk e das peladas, mas desde que os políticos resolveram perseguir o tráfico, as coisas ficaram pesadas e a vontade de ir embora bateu na porta com força.
Ouviu os tiros e se grudou na parede de cabeça baixa, correndo com a pasta de plástico cobrindo a cabeça como se fosse um escudo anti bala perdida, fazia de conta que era para a chuva miúda numa tentativa de diminuir o medo que podia paralisá-lo em vez de fazê-lo correr o mais que pudesse. Quando dobrou a esquina a movimentação era bem maior do que o esperado, todo mundo corria e um quase menino estava estendido no chão imóvel. Uma mulher desmaiava nos braços de alguém, ou fazia quê, já que gritava alucinada: meu filho! Meu filho!
Quatorze quadras para chegar em casa, estava acostumado a contar os passos, distraía a tensão e quem sabe impediria de ouvir os tiros e os gritos. Felizmente parece que estavam mais para cima e não à esquerda, direção que seguiria.
- Foi ele! Foi ele!
A voz berrou e em seguida alguém lhe passou uma rasteira fazendo com que caísse de cara no chão, um fio de sangue escorrendo do nariz que tinha batido de jeito no meio fio.
A partir daí tudo se transformou num grande pesadelo, uma leve visão de sacrifício passando rapidamente pela cabeça. “Te esconjuro!”
- Foi ele, eu vi! Reconheço o moletom e o capuz pretos. Foi ele que atirou.
A multidão enlouquecida pela sede de sangue, punição, esperança de centenas de anos, também reconheceu. Até os que nunca o tinham visto acusaram o reconhecimento e urravam: Também vi, foi ele. Deve ter a arma ainda. Está sempre armado este desinfeliz, eu vi!
A sorte se acabou ali. Que sorte? Esperança de sorte.
Meia dizia de homens suados, molhados pela chuva, cheirando a roupa suja, caíram sobre ele, amarrando-lhe os pulsos e os pés, mas de modo que ainda pudesse andar. Levantaram-no puxando pelos cabelos, rasgando o capuz e empurraram-no em direção à subida íngreme, sentido contrário e torto de sua casa. Pedras soltas na via o fizeram tropeçar, andava sem enxergar direito e não conseguia se lembrar das palavras do pastor embora procurasse febrilmente no cérebro entorpecido por xingamentos e impropérios. “Seu filho do diabo, filho de puta e outras verdades que tais”.
Caiu batendo os beiços que racharam e sangraram, uma dor aguda e estrondosa comprovou a perda do dente que não lembrou de cuspir e nem sabe se engoliu. Alguns chutes fizeram com que entendesse que era preciso levantar e que, talvez isso fosse sua salvação, já vira gente morrer pisoteada na estripulia de fugir dos alvoroços agora quase constantes na favela. As autoridades tinham se decidido a limpar o ambiente dando segurança aos moradores. Todos tiveram esperança e fé que isso seria uma bênção. Era uma questão de tempo, depois tudo seria paz e dias de sol, a alma renovada pela saída da bandidagem com seus atos demoníacos que visavam apenas o próprio umbigo. Um novo tempo, uma nova ideia de vida.
Compreendia a direção a seguir pela turba que abria caminho para ele, até parecia uma procissão. As ideias começavam a se organizar e ele pensava que era filho de deus e seria salvo deste inferno de loucos e desenfreados. Foi assim que resolveu anunciar:
- Não fui seu, sou filho de deus. Ele é meu pai assim como seu!
Alguma coisa deu errado por que choveram pedras e uma delas encontrou certo o caminho do olhos que fechou a meio.
Uma mulher abria caminho aos prantos, arrancando os cabelos e afinal reconheceu como sua mãe, ou talvez tenha ouvido seus chamados.
- Josué, meu filho. Que fizeste? Nada fizeste. Este é Josué. Estão enganados.
A esta altura estava estropiado e cego, entortava o caminho, pensava nos ovos de Páscoa que ainda precisava comprar para os primos e para neguinha Madalena de sorriso largo e branco. Madalena dos braços macios e colo exposto aos seus carinhos, jurando amor eterno que a ele se daria por toda a vida.
Viu que a mãe caía e alguém a recolheu nos braços. Seria o pastor? Levou-a do burburinho e pensou que talvez os pés balançando fosse a última coisa que visse da mãe. Lamentava em meio ao caos de conexão mental não ter ficado mais tempo com ela ao invés de ter corrido a soltar pipas. Sentar ao lado do tanque ouvindo as histórias de santos e anjos que ela gostava tanto de contar apesar do pastor dizer que não existiam. Mas eram apenas histórias e ela pecava no segredo da casa. Como menino era justo que quisesse mais sair com os amigos atrás de descobertas que repartiria com enlevo, do que ver mãe batendo roupa sob o sol.
Lá de trás veio um vozerio e todo mundo parou. Parece que o BOPE estava derramando mais polícia, alguns até se escafederam e seu amigo Jonas com um olhar que apertou o coração de ver, tanta piedade tinha, passou seu pano de mecânico pelo rosto dele, limpando ou sujando um pouco, mas pelo menos não correu mais sangue da testa o que abriu a visão e melhor não ter aberto já que se deu conta muito bem do que estava para acontecer. Já vira antes. Aonde mesmo?
O pessoal do BOPE tinha outras ocupações e os favelados desgranidos que cuidassem de suas turras, não era traficante e eles não se metiam na arruaça, essa era a regra: deixa o pessoal resolver suas pendengas, a missão é pegar bandido, o povo é trabalhador e do bem. Foi assim que o grupo continuou caminho inchado de gente a cada metro.
Josué não viu quando jogaram uma galinha morta retirada do ebó dos exus. Tropeçou na bicha e se enrolou em seus pés fazendo-o cair pela segunda vez. Bem de seu lado ouviu a saudação e teve certeza que estes nomes não se deve dizer, razão tinha o pastor, eram do demônio e traziam má sorte:
- Laroyê, Exu! "Exu, em ti confio. Leva meus medos embora, Compadre".
Continuou ouvindo como uma ladainha e no fundo nem achou tão dos infernos por que lhe deu uma impossível calma, parecia até que pediam por ele, tivesse fé e coragem que tudo terminaria em pizza com um olho roxo, sem um dente e um monte de escoriações dolorosas, mas passariam. Esperança, não morres nunca.
Ninguém o juntou, mas levantou assim mesmo, enxergava já o terreno baldio do alto da favela, quem sabe não quereriam se encher de pega-pega e apenas o largassem por lá aliviados dos pecados e felizes com a justiça.
Estavam bem na frente da casa de Sá Matilde com as meninas todas saindo meio peladas para assistir o desfile, até parecia cantor de funk chegando para a balada e isso não era fato de se perder. Quando viu Ritinha nem sabe bem como, no meio delas, com sua cara de vaca com sono sentiu um aperto no peito, até ontem brincava com sua irmã com as bonecas de trapos que a mãe costurava. Os olhos dela tinham um jeito estranho e parece até que corria água deles. As palavras saíram meio atropeladas ou bêbadas sem que pudesse brecá-las e não sabia que elas existiam dentro dele até ouvi-las:
- Não te preocupa, Ritinha, não chora. Um dia eu subirei até aqui de novo e te tirarei desta vida de pecados, és só uma guriazinha, teu coração é puro, mostra isso prá todo mundo, mesmo que tenhas que abrir as pernas todas as horas do teu dia.
Mal terminou de falar e alguém deu um passa pé que o desabou novamente. Estava tão pesado, devia ser cansaço do dia trabalhado, estava acostumado a dor no cangote, se parecia maior era por que não pudera se atirar na frente da TV como todos os dias enquanto mastigava o bom e conhecido sanduiche de mortadela.
Chegaram ao descampado e alguém o derrubou para lhe tirar os tênis quase novos e até as roupas todas, cada um carregando uma peça. O frio da chuva que se tornara gelada pela noite, arrepiou sua pele e então, só então se deu conta do pavor que o dominava.
Tinha que acontecer isso tudo, este pesadelo, bem na véspera dos feriados? Teria três dias para descansar até começar, no domingo a se preparar para a nova e eterna semana que sempre voltava.
Vacilou quando viu a árvore seca bem no meio do terreno, meio chamuscada pelo fogo, onde assaram o Nei das Trincas ao trair o Chefe embolsando alguns gramas de pó. Foi nela que o prenderam e parecia estarem enterrando alguma coisa em suas mãos para que não pudesse se soltar. Com o que seria que doía tanto? Precisavam também prender os pés? Ele não teria forças para caminhar nem dois passos, não fugiria, isso era desnecessário.
Já estava tudo turvo e mesmo que virassem as costas, deu-se conta que não conseguiria sair dali, queria mesmo era se atirar no chão, dormir com a chuva aliviando a dor que o queimava. O pastor era um desgraçado, tinha dito que ele era filho de deus. Onde estava o tal deus nessa hora? Por que não vinha com seus anjos salvá-lo daquele inferno? Melhor que não viesse, talvez morrer fosse não sentir nada, talvez a morte fosse a verdadeira salvação e foi assim que se entregou. Não estava sentindo mais nada quando Zé Pretinho o espetou com o canivete.
No dia seguinte saiu notícia no jornal com foto e tudo sobre o massacre da favela e o povo todo se persignou. Tinha isso que acontecer bem na Páscoa? E se... E se...
Povo é povo, houve até romaria por via das dúvidas, algumas mulheres levaram flores que puseram junto à árvore queimada. Muito tempo depois elas estavam lá como no dia em que foram depositadas e ele passou a ser chamado de santo milagroso já que a flores não morriam.
Eram sempre-vivas, tem a mesma aparência por todo o sempre até que virem pó.

Vana Comissoli

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