sexta-feira, 27 de abril de 2012

CONSTATAÇÃO

Sílvio Luiz explodiu. Fez “BUM!” e foi pedaço para todo lado provocando abalo na calçada a ponto das árvores correrem a se esconder atrás dos homens que não acharam buraco onde se enfiar. Uma nuvem amarelenta e atômica cobriu tudo, depositando pó de enxofre sobre os veículos e se acumulando no meio fio. Ali perto uma mulher tentava se recuperar do abalo. Fazia mais ou menos uns quarenta anos que vinha enfiando pela goela todo o lixo emocional que conseguia extrair das pessoas: Querelas de vizinhos que quebravam muros e se esbofeteavam para depois beberem juntos ao perdão e a justificativa tão cabível de que o inferno era a Mayara ou a linguaruda do 51; Cachorro latindo sem parar na madrugada de seus despertares; gatos no cio se esvaindo em gozo sonoro e agudo; Lixo espalhado na calçada, motorista energúmeno desaforando pelas ruas; A insuperável barreira de escandalosos silêncios entre ele e Sara. Deitou irritado por ter que dormir com a vagabunda daquela mulher que já tivera olhos rasgados e glamorosos, ou ternos, nem lembrava direito como eram, apenas que o puxavam num elástico cada vez mais curto. Agora ela estava ali com a garganta ressonando floreios de flauta enquanto ele queria comê-la, ou tê-la, quem sabe até mesmo matá-la desde que não sentisse mais desejo algum. Imagina tudo isso reprimido e depois não queria explodir como um balão estufado? Eu queria que houvesse uma terceira via, pensou de repente e lembrou que talvez conseguisse sentir a mesma coisa pela nirvânica vizinha da esquina, sempre tão sozinha e convidando para o cafezinho que ele nunca tomava. Mas... Mas não tinha vontade alguma por aquela facilidade que se expunha sem nem pedir. Seria isso que o brecava? Nem era parecida com nenhuma das mulheres que tivera, muito menos com Sara. Mantinha-se o padrão... Bobagem! Tivera louras, morenas, castanhas, gordinhas e magras demais, não existia isso de padrão. Se as coisas acabavam sempre do mesmo jeito e pelo mesmo motivo era apenas uma triste, incômoda e imbecil coincidência. As pessoas, principalmente as mulheres, obviamente os homens não conseguiam tão boa performance teatral, deveriam trazer tatuado na testa e nas pálpebras o aviso de: cuidado, queima, para se saber que não eram boa bisca e em dois toques nos corneariam apesar de todas as juras e lágrimas escorridas de rímel com a boca manchada de batom sabor gordura. Para muito além dali, do outro lado da cama, a mulher dormia e sonhava que não tinha jurado amor eterno e podia escapulir pela janela do sótão mesmo arriscando quebrar o pescoço. Como seria bom que os homens, esses hipócritas, carregassem um cartaz bem grande pendurado no pescoço onde se leria em letras garrafais: cuidado, perigo de explosão. Ou veneno seria mais acertado? Por que vivê-los era tomar um miligrama de cicuta diária. “Eu estava abdicando de mim mesmo. Opção minha para agradá-la e manter todo aquele mundo intacto dentro de um espaço onde coubesse apenas eu e ela”. - Isso sim era uma aberração, gritava Sílvio Luiz chamuscado pela explosão recente. “Eu estava abdicando de mim mesma. Opção minha para agradá-lo e manter todo aquele mundo intacto dentro de um espaço onde coubessem todas as coisas sem nos tirar lascas”. – Isso sim era uma total incapacidade de se desenvolver e esta página virada de que mulher tem que se adaptar ao seu santo macho, nem nos seus mais carentes momentos suportaria. Sílvio Luiz resolveu dar um tempo para explicações, precisava delas senão teria que dar um tiro na cabeça se sentindo um merda incapaz. Fez-se de indagador de si mesmo como quem escarafuncha um jardim cheio de inço. Foi mesmo quando? No sonho do ano passado? Ou seria neste mesmo? “Não é o amor o meu problema. Sou eu, meu medo de rejeição que me impede de ser eu mesmo e me amoldo aos outros para ver se tomo tento e assento para sempre num único lugar que não se acabe. Colecionar frustrações até explodir só me dará apenas a certeza de que falhei”. Dizem que os sonhos são os caminhos inconscientes que se abrem, sonhou a mulher que dormia ao lado do homem bomba. Ela era difícil, sabia, ora estava tudo tão bom e ora havia tantos homens maravilhosos elogiando seus cabelos macios, coisa que ele não fazia mais e sentia tanta falta. Se mostrava e, para sua surpresa recebia elogios açucarados que adoçavam os ouvidos, a alma e a vida tão besta enferrujada num minúsculo mundo onde cabia apenas ele e ela. O sonho deu um salto e agora caminhava num castelo cheio de portas onde todas se abriam para quartos vazios, menos uma que não conseguia destrancar e trazia o nome dele gravado. Raios de sonho, pensou dentro do sonho. Ambos somos terríveis, sentenciou Sílvio Luiz enquanto alisava os cabelos macios que chegava até a doer de tão bonitos. Se dissesse isso, provavelmente ela o chamaria de mentiroso e piegas. Só em pensar ser piegas tinha torções estomacais violentas. Coisa mais sem sustentação ser ridiculamente sentimental, também o chamaria de boiola e perderia toda a hombridade num sorriso satisfeito por ela estar gostando disso. Não e não. E a princesa do castelo se olhou no espelho dando uma risada que só as bruxas têm e a cara verdadeira com verruga no nariz e tudo, apareceu. Odiava sonhar, tomara não lembrasse de nada ao acordar. Agora passeava vestido de pato, os passos balouçantes a torna-lo ridículo. Então não vi solução, exceto a ruptura. Me sinto um cocô ao ceder e ela nem me pediu pra explicar. Acho que amava uma imagem criada e me encaixei nela para tê-la, queria um "cafajeste", dos que somem por um tempo. Complicou-me, dizer as coisas melosas todas e depois sair sem aviso para que ela sentisse a enorme falta que eu fazia. Não queria ser a namoradinha que cuida de mim, que tem afinidade de gostos, queria ser a minha vagabunda. Sei lá que imagem de macho tem na cabeça e me enrolei de uma forma que a quero desesperadamente e a odeio por que me destrói. Se não a tivesse conhecido eu não saberia o que realmente quero, ainda não sei. Que foda! Assim não quero e de outro jeito quero? Se não gostar também? Sara, no enevoado do sono, percebendo difusamente movimentos ao lado que não sabia explicar ou localizar com precisão, pensou: "Amor próprio é o único que não acaba". Ela sabia que já tinha acabado. Teria preferido algo mais cinematográfico, ela indo embora num dia de chuva. O problema que sentiria um frio danado e ele talvez batesse a porta e não se importasse com a tremenda gripe iminente. Amar uma imagem é muito chato para o imaginado porque a gente cansa e quer voltar para si mesmo. E Sílvio amou alguém que não sou eu por que não gosto desta meleca toda que preciso fazer para que goste de mim. Passeava de mãos dadas com ele, ela sendo apenas uma enorme foto em preto e branco. Nem sequer colorida? A sensação de Sílvio Luiz era de que não estava pensando, ou sonhando sozinho e não sabia que estado era esse. Talvez sonambulismo. Parecia mesmo que era acordado por que podia ver a luz de cabeceira sonolentamente debruçada no travesseiro. Um final meio "Casablanca", era a única maneira de acabar uma tórrida paixão. Ele se derretia, ou explodia, parece que não, a explosão já se fora e agora apenas derretia sob o calor do efeito. Ele tinha feito uma imagem dela tão perfeita! A gente gosta dos gran finale, das apoteoses, mas não existem e fica tudo chocho sem seguimento ou possibilidade de novo capítulo. O diretor acenava que tinham que recomeçar, corromperam o script! – berrava do lado de fora da jaula. - E apesar disso não acaba aqui. Eu sigo. Eu vivo. E não poderei explodir por que arrasaria com o quarteirão. – Fez um gesto de entendimento e olhou o texto de letras borradas, esquecera todas as falas. Talvez tenha sido apenas um jogo de interesses, mesmo que eu não saiba qual, definiu Sara antes de virar-se para o lado da parede, levando junto o lençol de flores miúdas de que gostava tanto. Sílvio sentiu um puxão na coberta que expôs a lateral da coxa e trouxe-a para o lugar certo. De manhã o lençol estava rasgado ao meio, Sara cobria-se precariamente, o frio provocando uma posição quase fetal. Sílvio Luiz tinha apenas o peito coberto, com fiapos de pano se esgarçando pelo ventre. Tocou o despertador, ambos saltaram da cama e, como nos últimos tempos, fizeram desjejuns completamente diferentes, cada qual mergulhado em seu jornal ou revista preferido. A única coisa em comum era o café preto, puro, sem açúcar que encerrava a refeição, as mãos se encaminharam ao bule simultaneamente sem que os olhos acompanhassem o gesto. Foi assim que aconteceu a colisão dos dedos e um arco voltaico se formou. O arco ocorreu em um espaço preenchido de gás altamente combustível entre os dois e isto resultou em uma temperatura muito elevada, capaz de fundir ou vaporizar virtualmente qualquer coisa, até as mágoas e os desfechos. A copa vibrou enquanto as dores e as palavras ásperas se transformaram numa poeira cósmica que enveredou porta a fora em direção a um rabo de cometa. As xícaras se esfacelaram ao serem expulsas de sobre a mesa quando os corpos se inclinaram um sobre o outro como na primeira vez, com a diferença que estavam com a cara lavada da manhã e não haviam tido o cuidado de colocar as máscaras. Surpreendentemente tinham um cheiro delicioso e um toque indelével guardado na memória. Sara ainda tentou dizer: - ...eu sonhei... Vana Comissoli

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