quarta-feira, 11 de abril de 2012

TIREM-ME DAQUI!




Em Nome de Deus Clemente Misericordioso
Que a paz esteja convosco

Em qualquer lugar do mundo o trabalho campesino é rude e duro, feito para pessoas simples em quem o contato com a terra é uma extensão de si mesmo. Tudo que precisam conhecer da vida a natureza ensina e talvez saibam viver melhor do que os letrados e pernósticos intelectuais do concreto.
Shamim não era diferente de seus vizinhos, pouco estudo, pouco tempo para grandes pensamentos. Sua fé era a mesma que herdara dos pais, que herdaram dos pais, que herdaram... Para que perguntas sobre isso? Tem todas as respostas nas maçãs que amadurecem, na aspereza do solo exigente que dá em troca de esforço um perfume frutado ao peito reconhecido. Deus não é mesmo isso? Somos fiéis, fazemos o trabalho que Ele nos deu com afinco e prazer e... Pronto, recompensa. Não tem nada a reclamar de Deus. Tudo que acontece é fato da vida assim como os pássaros voam, as plantas crescem, chove quando tem que chover e o homem é mau quando tem que ser.
Neste dia levantou quando mal saia o sol a espiar a terra paquistanesa. O sol não sabe a quem alimenta, não entende de muçulmanos ou cristãos, tanto uns como outros precisam dele do mesmo jeito, assim como de água, alimento e sono. Não foram as regras criadas por Deus indistintamente? É o que Shamim sem pensar, pensa, está dentro dela. Têm vizinhas que adoram Maomé, mas batem roupa no rio exatamente como ela, gritam pelos filhos, fazem segundo a mesma receita, o pakora e as deliciosas samosas. A única diferença é na hora de rezar, Shamim não tem horário, a maioria dos habitantes da pequena aldeia tem.
Alzubra, Azzah, Ghayda e todas as outras se ajoelham longe dos maridos para orar "lá onde a terra pouco verdeia, para não se perder na areia, tem sempre a luz da candeia, do archote de Maomé". O silêncio verde do Islã cala até a boca dos cachorros, dizem...
Shamim observa, é cristã, aqui na “terra dos puros”. - Pak deriva do persa e significa “puro”, e Stan, “terra”. Não convém espiar nesta hora, mas é teimosa, não se importa que seja um grão de areia neste mundo islâmico. Jesus veio para todos e a Lei da Sharia também, não há defesa contra a blasfêmia do olhar, no entanto até os cristãos arrefeceram este peso não de ser com ela, perdida nesta terra pedregosa que se voltará a ira. Não entende de estado laico ou vinculado à uma religião, são ideias tão longínquas quanto imaginar um mundo onde as mulheres não estejam atrás de um véu.
No seu mais secreto íntimo deduzia com convicção: "Cristo morreu na cruz pelos pecados da humanidade"; que sacrifício Maomé havia feito pelas pessoas? Até as matara e em seu nome muitas e muitas mais. Na própria aldeia tinham havido julgamentos rápidos e eficientes em cortar mãos e o açoite é um objeto abominável e íntimo. Que ninguém a ouvisse, recorreriam ao imame local, esposo de uma das amigas, e a denunciariam à polícia pelo delito de blasfêmia. O artigo 295 do Código Penal do Paquistão determina pena de morte para quem blasfemar contra o Profeta do Islão. Teriam os pensamentos soado alto demais? Atravessado a espessa fumaça de seu cérebro?
Cresceram juntas, casaram com os maridos a quem foram destinadas, tiveram filhos na mesma época, mas Shamim, cinco vezes por dia é a estranha. Tentam convencê-la a aceitar a fé islâmica segundo manda a "Jihad Menor”. Ela ouve, treme um pouco, há tantas histórias! E de uns tempos para cá parece que houve um aumento nas diferenças e não trocam receitas e risinhos com a mesma frequência. Mas não... As amigas, quase irmãs, não fariam nada contra ela.
Após a Salát Assobh, a oração da manhã, vão ao poço buscar água, conversando faceiras enquanto puxam os véus para esconder a boca. As casas não tem água e não há estranhamento nisso. Há bastante para todos no poço.
Shamim crê que serve ao Deus vivo e que, por isso, não há razão para negar o cristianismo e virar uma muçulmana. Não há razão para medo, será consolada pelo Senhor. Desconhece que desde o dia em que deixou escapar ou talvez não tenha escapado nada, só pensado intensamente, algo sobre a igualdade das fés todos a consideraram uma blasfema.
Habibah coloca seu jarro na beirada do reservatório e vira-se para continuar a conversa ininterrupta que as mulheres adoram. São descuidadas nesta hora, nenhum homem à vista, os maridos estão no campo e os filhos nas escolas. É a sua hora, talvez mais sagrada do que qualquer das sagradas horas de oração, mas isso nem elas, nem Shamim sabem. O jarro balança um pouco, mal assentado e o gesto espontâneo faz com que Shamim corra a segurá-lo. O alvoroço é geral:
- Não toca! Impura, infiel, vais conspurcar a água de minha família.
- Só fui segurar para não cair e quebrar. Não toquei na água, está vazio ainda.
Habibah toma o pote e lança-o ao chão, está perdido, sujo e violado. Allah é Deus e Maomé o seu profeta, foi determinado que uma impura não blasfeme se opondo às suas leis.
No dia seguinte, seus vizinhos foram à polícia e relataram que Shamin fez comentários depreciativos contra Maomé. A ira de Deus é menos poderosa que a ira do homem contra aquele que blasfema sobre seu deus.
Por mais que o homem queira, Deus não mudará Seu caminho que foi feito à imagem e semelhança do homem e nestas paragens, os caminhos estão escritos no Alcorão.

Vana Comissoli

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