quarta-feira, 26 de outubro de 2011

FILHOS DO PODER SUPERIOR

Aos parceiros da UDQ na lembrança
amigos, irmãos, camaradas
para sempre.

Patrick, André, Astréia e Míriam.
Conhecemo-nos aqui nessa casualidade imposta. Prisão disfarçada.
Somos adictos internados, cada um na sua, numa clínica para dependentes químicos.
Os dias se arrastam nos grupos terapêuticos, sessões com psiquiatras, seminários explicativos (prá lá de chatos), filmes patrolando nossa adicção.
Temos pela frente trinta dias iguais, convivendo numa panela de macarrão que cozinhou demais. Mole e emaranhado. Um barulho ensurdecedor dentro da cabeça. Noites fritando na cama até chegar o entorpecimento sonambúlico dos remédios forçando a desligarmo-nos do mundo.
Muitos momentos, horas ociosas. Fumamos loucamente. Não temos bebida, nem droga, nenhum embalo. Os cigarros como único escape, uma chaminé para os pensamentos esburacados.
Uma constante charada martelando sem resposta: Quem sou eu? Quem sou eu? Um cogumelo ou um elefante branco? Somos um pouco de tudo, até da interrogação. Tentando sair de um buraco negro e fundo que nós mesmos cavamos.
Cogumelos tentando se proteger com suas copas da chuva ácida, presos nas raízes que sobraram da gangrena de nossas desgraças.
Elefantes brancos no espelho dos olhos de quem nos observa.
Um monte de retalhos a serem costurados para, afinal, nos mostrarem o que somos e a que viemos.
Entramos esquivos, meio chapados ainda, meio bêbados. Estômago embrulhado, o medo nos olhos, a solidão na alma e a desconfiança como escudo. Alguns dão o último “teco”, a última fumada da pedra, a última cheirada, no banheiro da recepção, enquanto esperam a triagem. Só os alcoólicos não fazem isso: impossível esconder uma garrafa de vodka no rabo.
Logo estarão nus e se agachando para ver se não trazem nas entranhas algum suspiro de cocaína, crack ou maconha.
Arrancados de nossas referências, por vontade própria alguns, outros a fórceps. Pouco convencidos da lepra em que nossas vidas desembocaram.
Aos poucos, a exposição desnuda das terapias, nos mostra as afinidades dos desafins em tudo, menos com as drogas. Os pontos de toque e de choque em que esbarramos.
Encontramo-nos.
Patrick. Vinte e seis anos, cocainômano injetável. Lindo como Adônis, meio morto como Lázaro. Homo, bi e se pudesse, tri sexual. A sensibilidade jorrando pelos poros, pelas tatuagens, pelos piercings. Um espírito gritando, enquistado no desespero.
André. Ao passar pelas ruas, as pessoas se voltam: que cara de bom menino! Que translúcidos olhos azuis! Cabelos loiros, comportados. Suave e interrogador olhar. A inquietação enchendo sua boca de chocolate, balas e perguntas. Voraz, incerto, inseguro. A cocaína cheirada no escondido da madrugada, do filho e da mulher a quem se atracava com toda a força do coração torcido. Muitas internações, esta sua última esperança. Haverá a última? Ou será a última antes da próxima?
Astréia. Menina levada, quase criança. Estapeando o mundo com a raiva nos olhos turquesa, na aparência mais do que desleixada, nos palavrões que saúdam suas falas. Na homossexualidade escarrada na cara dos certinhos e estúpidos, no seu conceito. Um ET sem saber de que planeta caíra. Perdidaça, jurando que sabia tudo. Somelier de todas as drogas. Uma expert.
E eu. Mírian. Atravessada pelo álcool depois de ter sido atingida por um avião batendo nas torres gêmeas. Família, filhos, trabalho. Tédio aparentemente normal. Torcida igual pepino para se tornar o que jamais fora. Deixando-se domar por medo do mundo grande e ameaçador. De solidão já tinha prenhe a infância irreversível. Algumas fugas guerreiras para manter a identidade, mas que já prenunciavam a válvula de escape da vodka. Um barco desgovernado procurando bússola.
Quatro vidas, quatro desencontros, quatro carências absurdas.
Na encheção das terapias ou nas dores da cura, em meio às conversas sérias, mineradoras, a exaustão de lapidar-se.
Foi simples assim.
O fumódrofo mergulhado na fumaça dos incontáveis cigarros, os poros exalando nicotina, a boca feito cinzeiro.
Grupos reunidos no dominó, alguém sozinho num canto com olhos perdidos, um violão retinindo.
Nós quatro proprietários da mesa grande onde ninguém se atreve a chegar.
As palavras dos grupos de auto ajuda tilintando nos ouvidos:
“Acreditamos que um Poder Superior a nós mesmos pode devolver-nos o equilíbrio.” (Primeiro passo do A.A.)
“Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus na forma em que O concebemos.” (Terceiro passo do A.A.)
Poder Superior... Estrela longínqua no espaço sideral da adicção. Crença vazia de significados. Objeto de nossas orações desesperadas e jamais materializadas. Nada de milagre à vista. Só muita coragem e querer. Ponto de interrogação.
− Tive uma idéia espetacular! Não somos filhos do Poder Superior?
Eles me olharam.
− E daí? Grande merda. – retrucou Astréia.
− Ele existe. – Afirmou André convicto. Eu vi. No lustre de minha sala.
− No lustre... Ah, me poupe! Viajandão vê até Jesus Cristo descendo da cruz soltando fogos de artifício.
− Existe, mas não se importa. – vaticinou Patrick.
− Então vamos recriá-lo à nossa imagem e semelhança, conforme o concebemos. Não é isso que eles pregam?
A olhada de meus parceiros traz carradas de curiosidade. Alguma luz, eu acho.
− Vamos criar a Igreja dos Filhos do Poder Superior!
Uma lufada de ar baleiado. Fonte de inesperado desufoco. Brincadeira no meio do peso.
− Seremos os pastores.
− Isso dá grana, muita grana.
− Irmãos, ovelhas desgarradas, o Poder Superior abre seus braços sobre suas cabeças sofridas. Espera apenas a vossa aceitação. Materializem a entrega de suas almas, de suas vidas através da fé do dízimo. Doe e receba em dobro!
-- Em triplo! – Triplo é melhor. Pega bem.
Pastores precisam de nomes de impacto. Místicos. Força e fé.
− Patrick, serás Osiris, o deus egípcio julgador dos mortos, o que pesa os corações e portanto a validade da vida.
− André serás Thor, o deus nórdico. Representando a força da natureza, o trovão, fazendo justiça com seus raios, com o seu martelo.
− Astréia. Serás Perséfone, amada de Hades, deus das entranhas da terra e para lá a levou. Por pedido de sua mãe inconsolável volta para visitá-la e da alegria de Demeter, nasce a primavera. O renascimento. Renasceremos nas tuas mãos, pastora dos perdidos, dos abandonados.

Eu serei Kali. Kali tem um relacionamento ambíguo com o mundo. Por um lado destroe os espíritos malignos e estabelece a ordem. Entretanto também serve como representante das forças que ameaçam a ordem social e a estabilidade por sua embriaguez de sangue e subseqüente atividade frenética. A deusa da morte. Organizarei a mente dos desviados.

Já a mania tomava conta de nossos frágeis egos. O entusiasmo eleva as vozes.
Astréia brada:
--Roupas. Não podemos usar coisas comuns, banais. Nós somos os pastores, os fiéis devem nos temer e respeitar.
Era chegada na moda trash. Patrick transava jóias de prata, anéis, pulseiras.
− Branco, tem que ser branco. Pureza. A nossa pureza. – Baixa um pouco o tom. – Não descobrimos, mas existe.
Logo volta ao tom frenético:
− Com uma tremenda folha dourada no peito, a cor pode mudar de acordo com a graduação hierárquica. Dourado só para os fundadores.
− Folha de quê?
− Sou mais uma nota de dólar. Lembrar sempre o dízimo é fundamental. A gente vai precisar de iate para meditar no grande mar. – Esse é André, o prático da turma.
− Que dólar, que nada! O dízimo a gente berra no meio da colheita. Arranca os cabelos.
− Vou usar peruca, então. – Murcha Patrick.
− Tem que ser uma tremenda folha de maconha que é familiar a todos. – Andréia berra.
− Legal! Não podemos esquecer a desgraça que vivemos.
− Então precisaremos de avião para ir aos lugares sagrados: Colômbia, China, Afeganistão. Todos.
− Como assim?
− Produtores de coca, ópio, mescalina, haxixe, LSD...
− Sensacional!
A necessidade de um hino surge.
Astréia-Perséfone resolve a situação de empaque.
− Vamos usar a música do Paralamas do Sucesso, só mudamos a letra:

Tô segurando
Essa lanterna
Para os afogados
Sei que vou poder te salvar.

− Se é para pedir licença, a gente paga e usa a música toda:

Quando tá escuro
E ninguém te ouve
Quando chega a noite
E você pode chorar

Há uma luz no túnel dos desesperados
Há um cais de porto
Pra quem precisa chegar

Eu estou na lanterna dos afogados
Eu estou te esperando
Vê se não vai demorar

Uma noite longa
Pr'uma vida curta
Mas já não me importa
Basta poder te ajudar
E são tantas marcas
Que já fazem parte
Do que eu sou agora
Mais ainda sei me virar

Eu tô na lanterna dos afogados
Eu tô te esperando
Vê se não vai demorar

− As pias de água benta, de benzeção, devem resgatar a subjetividade. Por preferências, marcas indeléveis da individualidade, do eu soterrado dos fiéis: whiskey, vodka, cachaça e um licorzinho para arrematar.
− Bem, então as hóstias deverão ser de cocaína. – Berra André-Thor.
− E teremos confessionários privativos, onde os pecados serão dramatizados longe dos olhares críticos. Só na revivência poderão sentir o peso da injúria feita. – Profetiza Patrick-Osiris. – Cada um deve reviver sua droga de preferência. Penitência.
A cada risada os outros internos se aproximam. Novos companheiros já se abancam à mesa e logo são batizados com nomes para a nova vida.
A Igreja dos Filhos do Poder Superior cresce a galope. Dei-me conta da preponderância sobre o juízo que as drogas obtêm com facilidade. Elas seduzem. Qualquer caminho é rota de fuga do mundo que inverte valores e estarrece os mais sensíveis levando-os às rotas desenfreadas.
Ezequiel que a tudo assiste, aparentemente fechado em sua concha, isolado, grita:
− Panacas, vocês não estão criando nada! Não passam de crianças reproduzindo o que vêem. Irremediavelmente condicionados. Boiada de idiotas. Políticos, ladrões ou capachos: traficantes no poder das nações. A mentira maior do que a verdade e a manipulação é moeda corrente de livre trânsito.
Um suspiro tremente escapa de minha indignação:
− O quartel general está aqui dentro, mas o grosso da tropa está lá fora! O mundo está roto, a beleza enxovalhada e o ser humano virou ração para os bois gordos. Um trapo descartável.
Ezequiel se levanta:
− Fomos engolfados pela fraqueza. Entregamos nossas vidas de bandeja. Tentamos acertar errando. Tentamos sobreviver fugindo. Perdemos a guerra e nos tornamos presas fáceis, nos desumanizamos no imundo. Mergulhamos no mar estúpido da descartabilidade. Fomos invadidos, esquecemos de questionar e reivindicar o status de ser humano. Estúpidas e ruminantes vacas de presépio, onde na manjedoura vage a vulgarização dos sentidos. Em cada um de nós o mundo morre um pouco.
Silêncio total. Olhamo-nos perplexos. A consciência dói. É ferimento sem cura, estigma. O silêncio é uma mortalha.
A nova igreja aborta-se ao nascer. Jamais terá forças para driblar a igreja 666 que viceja pelos corredores do planeta.
Em vários cantos da Terra, em múltiplos idiomas, os crucificados elevam pensamentos enquanto são bombardeados pela mais mortífera artilharia que se tem notícia: a desesperança e a descrença que leva à desonra.
Alguém começa a cantar baixo, logo seguido por todos e o som aumenta, toma conta do espaço, das mentes:
“Vem, vamos embora
que esperar não é saber.
Quem sabe faz a hora
não espera acontecer.”

• De todos estes personagens reais apenas dois se mantém em recuperação. Alguns voltaram para a clínica, outros continuam absurdamente na ativa e algum está preso.
Os sobreviventes se engajaram em serviços beneficentes de auxílio aos dependentes na ativa e seus familiares. Os laços de irmandade jamais se desfizeram e embora distantes o contato é permanente e a felicidade partilhada a cada nova conquista de vida. Irmãos paridos na dor, irmãos unidos na recuperação.
Para sempre.

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