sábado, 22 de outubro de 2011

URUBUSERVANDO

Uma sensação vaga, imprecisa, urubu adivinhando carniça pelo cheiro. Eu senti.
Ele era alto, moreno, de grandes e estarrecidos olhos negros. O cheiro de carniça estava soterrado sob um excitante Mont Blanc que devia custar quase, ou mais, do que um salário da plebe.
Eu sobrevoava os campos primaveris de minha fácil vida. Gostava de encantar, mais precisamente de seduzir, sem saber dos riscos servidos nos canapés de caviar com que me lambuzava nessa promessa de retornos jamais vindos.
Quando cheguei à festa o aroma me alcançou nos olhares famintos de minhas amigas, no ti ti ti que rapidamente foi confirmado ao enxergá-lo. Era ele, tive certeza. Vinha montado no cavalo branco e eu esperava seu beijo fingindo adormecida. Não era fingimento.
Envolvê-lo foi fácil, eu tinha todos os ingredientes necessários da receita de princesa. Flores, bombons, mimos... Princesas são tão bobas! Ouvem uma única melodia tocada em cravo secular onde a letra, canto-chão, repete: Felizes para sempre... Felizes para sempre...
Assim que pousei sobre ele a carniça exalou. Acontecia nas brincadeiras do amor. Amor, rosa vermelha, cálice de vinho tinto... Cálice de vinho tinto... Cálice de vinho tinto... branco, uísque, vodka, caipirinha caipira de cachaça, cálice... cálice,,, cálice. Copos... copos... copos... “Pai, afaste de mim esse cálice, de vinho tinto de sangue”.
No princípio culpei o vizinho que fedia e todos sabíamos, depois meu nariz osfrésico. Pulei para o alerta, deixei rastros de perfume de todos os tipos: reportagens, livros, avisos. Efeitos dos perfumes daninhos. Meu príncipe amava o odor afrodisíaco, hipnotizante, acostumara-se e não via mais a diferença, ou se a via enamorara-se por ele para sempre, acostumara os sentidos e se encharcava cada vez mais. Amor antigo, bem mais antigo do que eu, a rival.
Por fim decidi que meu amor soberano o envolveria se eu o exercesse à exaustão. Desenvolvi aromas de carinho, entusiastas, chorosos, lamentosos, impediriam que ele se inebriasse do cheiro de desespero e infâmia.
Fomos deixando os duques e duquesas de lado, tinham começado a respirar fundo quando chegávamos, embora disfarçando, para logo em seguida passarem a usar máscaras protetoras descaradamente na cara.
O príncipe já era quase um sapo disforme e coaxava noites a dentro transformando meu sono de pós prazer numa vigília de temor constante, numa guerra ímpia e injusta como ouço no hino de minha terra. Não mostrava valor, constância nenhuma.
Eu tinha que desistir. O urubu em mim crocitava não. Dizia que carniça tinha lá seu encanto, seu prazer. Quem sabe encontraria vida sob as carnes sanguinolentas, embaixo da aparência pútrida das olheiras. Quem sabe eu...
Não, por mais que ele me mostrasse as delícias de aspirar o odor branco das nuvens eu não podia, não conseguiria me habituar a ele.
Urubus comem carne morta, mas não apreciam se transformar em pasto de seus iguais, exatamente para manterem a sua, linda e fresca, ingerem a repugnante refeição. Eu fazia isso? Era isso que eu era? E a princesa, o castelo, o cavalo branco? Onde?
Eu voava, planava sobre tudo, além das nuvens e não me vinha coragem de abandonar a paisagem ruandense de 1994. Era a isso que assemelhava minha visão: facões cortando corpos, sonhos, planos. Cortando e estripando meu príncipe.
Os amigos dele tomaram o lugar daqueles que escolhem melhor seus perfumes e eu planava sobre eles também, cada vez mais alto e durante mais tempo, era a maneira de acreditar horizontes.
O príncipe tomou banho, sentou-se todo príncipe branco com o perfume nas mãos, acreditei em renascimento como uma entrega ao santo da devoção. Havia incenso queimando. Orei a ele que era meu tudo, meu deus particular:
- É tão importante? Mais importante que eu que te amo tanto? Te dou minha vida e meu ar? – Não mais chorosa perguntei amassada, minha própria pele se desfazendo.
Ele jogou aquele olhar comprido e doloroso que sempre fisgava o perdão dentro de mim. Vi alguma coisa verde dentro dele, muito rápido e logo branqueou.
Ronaldo abaixou a cabeça extremamente concentrado, fechou suas cortinas estendendo-me meu aviso de demissão e cheirou a primeira das cinco carreiras enfileiradas como soldados mercenários.

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