domingo, 12 de junho de 2011

Alice... Quem foi que disse?


Alice não era do tipo que aparece, marca presença, pelo contrário, passava despercebida, ausente estando ali o tempo todo. Treino para quando virasse fantasma, ninguém vê, nem ouve, mas está ali. As pessoas comentando, fazendo de conta que ela não escutaria. Só ela sabia que escutava numa considerável distância, uma linguagem bem pouco conhecida e sem significado.
“Como a Alice é boazinha!”, “A Alice é um doce de pessoa”. Pontualmente a velha arrematava: “E é muito prendada.” Essa era a parte mais irritante. Ficava imaginando se dissessem: “A Alice é uma boba, dá palpite até no que não sabe”. A velha diria: “É, mas muito prendada”. Sabe-se lá por que ela fazia uma associação dos infernos, prendada era prenda atada. Ela era uma prenda atada a não sabia o que. Melhor treinar para fantasma. Distanciava-se do mundo brilhante demais, barulhento demais, incompreensível demais.
Será que fantasma, espírito, ou coisa que o valha também ouviria comentários? Os espíritas diziam que sim, mas não importava, ela via fantasmas de vez em quando, assustavam, se acostumou aos poucos, agora passavam e só. Luzes, brilhos, sons.
O que diriam dela? Uma folha morta? Um cogumelo de pernas? Se fosse surda em vida, talvez fosse surda depois da morte também, pelo menos não ouviria comentários nem que era muito prendada. Quais seriam as prendas de um fantasma? Teceria teias voláteis como os pensamentos? Vestidos de gaze tecidos com o orvalho da manhã que viram sonho ao sol? Essas elucubrações não preocupavam Alice, nem as tinha, mas enchiam de dúvidas a cabeça da mãe dela.
Vieram as férias, sabia que eram férias por que entraram no carro e andaram... Andaram... Não chegava nunca e é desassossegado ficar tanto tempo sentada sem uma linha nas mãos, sem espaço. As estradas são barulhentas e desconhecidas, um medo alucinado tomava conta dela obrigando-a a gritar, espernear a ponto de sua mãe prendê-la no banco, ou ampará-la no colo até que dormisse. Chegaram, após muitos cafés e pastéis. Essa era parte boa, ninguém tirava a comida de sua mão, podia brincar com ela jogando no chão e voltar a pegá-la engolindo sofregamente. A mãe olhava para o lado e fazia de conta que não via nada. Ficava mais complicado entender razões, no momento era bom.
Teve certeza que eram férias embora não entendesse o que deixava os pais tão sorridentes se tudo era igual, pelo menos para ela, nem sabia bem o que eram férias, coisa aérea e que não se pode tocar, nem por na boca. As linhas não muito coloridas estariam ao alcance da mão e podia, como sempre, fazer longas e frouxas tranças com elas. Depois a mãe inventava usos secundários como por na cintura ou prender os cabelos. Era quando a velha espiava e dizia: Como Alice é prendada! Não era bom vê-la revirando os olhos enquanto falava, podiam saltar e fugir chão a fora até trombarem com a porta..
Respirou fundo por que o cheiro do ar vinha volitando sal, gostava desse odor ardido embora no início machucasse um pouco. Olhou a casa abrindo primeiro um olho e depois o outro, não dava para fazer tanta coisa de uma só vez, amedrontava. A casa onde estacionaram tinha porta de sorriso e janelas tremendo, o portão grunhia, outro fantasma a enfrentar, até que se acostumasse.
Não saiu no dia seguinte, não podia e não esperavam isso dela. Tudo tem que ser aos poucos, a caixa de Pandora, se aberta abruptamente solta perigosos monstros, mas tem fadas e duendes se nos acostumarmos às frestas. Ela se acostuma aos poucos com tudo, na estrada se anda passo a passo.
Foram à praia, o mar é aquele engolidor terrível que ruge até na calmaria, o pai deu a mão e, lentamente foi aprendendo que não seria engolida de supetão. Cuidado, um pé, depois o outro e o mar se acalma, embala, refresca os temores.
Começou a sair sozinha, as férias criaram essa qualidade, podia ir para onde quisesse e não a barravam, foi assim...
O rapazinho estava sentado navegando o mar com os olhos. Não mexia nem um dedo, por isso Alice não teve medo, ia caminhando sem pressa e tiquetaqueou vontade de compartilhar a silenciosa espera dele. Esperaria a coragem chegar como ela esperava ou estava se acostumando com o mar? Não tinha respostas por não ter perguntas. Tampouco sabia se podia sentar ao lado dele ajudando na espera, então sentou. O rapazinho não se incomodou, não disse o nome, nem perguntou nada, a velha estava longe, sem observações sobre como Alice era prendada. Provavelmente o jovem não se encantaria com isso, tornou-o mais próximo.
Ia todas as tardes sentar-se ao lado dele, na convivência calada de navegar o mar, acostumar-se com a imensidão do céu, sabiam as mesmas coisas e por isso as palavras eram confetes desnecessários. No silêncio não há medo, o sorriso do rapaz dava certeza de que ele também sabia disso. Com ele aprendeu a defender-se do sol: a mão em aba olhando as águas sem que o movimento a perturbasse.
Nunca estivera tão confortavelmente próxima de alguém, alguma parte adormecida de sua alma acordou e ela balbuciou a primeira palavra. Já ouvira tantas vezes, mas ninguém entenderia se tentasse dizê-la: mar. Todas as formas muito grandes passaram a ser mar. Ninguém compreendeu de onde saíra, mas aprenderam que era enorme. O que parecia grande diminuiu e seu mundo se ampliou com isso.
Logo aprendeu outras coisas no silêncio tão fácil de se aprender. Um estranho prazer no peito que fazia sorrir. O rapazinho sorria e ela também. Segredos foram ditos alheios de sons. O primeiro amor desabrochou na areia desenhada pelas águas em ondas suaves.
No recôndito do peito, sem que nem por que uma vez desnecessário, bateu emoção que cavalgou sentimento. Os dias se tornaram um só sentada ao lado daquele que tomara o espaço de todos em sua vida. Quando o sol procurava casaco para a brisa da noite não se acomodar nos ombros, ela se despedia gentilmente: mar e ia embora navegando por dentro na grande descoberta.
Chegou à casa e assustou-se com os barulhos e movimentos, mexiam em tudo, trouxeram para o meio da sala as mesmas caixas de guardar que antes tinham desguardado. No dia seguinte, entre fúria e arrastos embarcaram no carro. Andaram... Andaram. Desta vez os pastéis não aliviaram a cansativa e desnorteante prisão, de alguma forma sabia que o menino não se afastaria do mar para segui-la. Como poderia encontrá-lo depois que o caminho do mar se tornasse desconhecido?
Esperou nos dias, sonhou nas noites, mas ele não veio lhe dizer que esperava pelo encontro. Se esquece tudo, Alice também esqueceu. Novamente houve aquela quebra na calmaria conhecida e novamente, roupas e tralhas foram escondidas nas malas. Novamente veio a estrada longa, cheia de pastéis. Deu-se conta que iam ao mar, ficou quieta, esperou. Voltaria ao encontro marcado de todos os dias, nem sequer titubeou na dúvida que ele não estaria sentado a navegar o mar. Era o destino do rapaz e ninguém foge ao seu destino.
Não esperou por nada, fugiu com força da mão que a segurava, correu para a praia, seu pensamente não se esquecer do lugar e nem de como chegar. Lá estava ele sorrindo, navegando sem barco, sonhando estrelas, a mão resguardando os olhos da luz e do rocio. Tem momentos que cumprimentos se tornam vazios de sentido, sabemos que não houve ausência, apenas saudade.
Queria ficar ali, sentada ao lado do rapaz, cuidando que a água não os levasse para aquele ponto onde tudo deixa de ser visto. Teve coragem mar e passou o braço pelas costas dele que não se furtou. A decisão foi tomada sem pensar sobre ela, pensamento não existem quando a gente quer de verdade. Como faria para permanecer também não se questionou, ficaria e era assim.
Os pais se preocuparam, foi um corre-corre e vizinhos ajudando. Caíra a noite e Alice com seu medo do escuro não aparecia. Espanto, grave preocupação. Foi Gabriel, o velho pescador que conhecia aquelas paragens desde garoto que encontrou. Como contar? Melhor no ligeirão antes das lágrimas fazerem rios na sua cara.
- Ela está lá... Fria e sorrindo, abraçada na estátua do menino do mar.

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