sábado, 18 de junho de 2011

AGONIA

Ela estava completamente nua e branca à sua frente. Sem olhos, sem fala, sem convite para nenhum dos sentidos. Parecia que não tinha alma, nem sabor. Era o momento da agonia de Pedro Navarra.
Talvez se desenhasse hieróglifos houvesse alguma coisa a rotar na brancura sem frestas que fechava todas as possibilidades. Acontece que não era escritor, nem sequer esculpia e muito menos filmava. Era pintor.
A palheta ao lado dormitava tédio. Os pincéis desanimados sobravam todos inertes. De novo Pedro espremeu idéias, a cabeça tão branca quanto a tela à sua frente. Miséria - pensou miseravelmente condoído de si mesmo - pintor tem que pintar todos os dias. As idéias devem fervilhar como chaleira em ebulição, não faz mal que queime, o importante é cozinhar e não em banho-maria.
Ficou parado, a fome se esqueceu dele, os cigarros não, muito menos o vinho que dançava um tinto rock frenético. A inspiração escondida embaixo do sofá, ou queimando na lareira apagada dos pensamentos.
Olhou pelas janelas, o rio andava no passo moroso tão conhecido. Ele partia de si mesmo:
“Adeus, meu amor
Eu vou partir
e já estou saudades a sentir.”
Quem inventou esta bosta de letra para “Tristesse” de Chopin? Que merda! Não sou Chopin e nem sei diferenciar o dó do lá. Só tenho “lá” no fundo um “dó” danado de mim. Esculhambei tudo, perdi a musa, virei a mesa, rasguei a carta, risquei o nome!
Olhou a tela vestida de fantasma, só faltavam as correntes, nem essas ele conseguia enxergar. Talvez se a enchesse de correntes enosadas em si mesmas poderia sair alguma coisa. Bebeu outro copo de vinho como se toma água, a vertigem entrou no sangue, tremeu as bases, viajou na maionese.
A tela inchou, se contorceu, foi nascendo... Nasceu escultura. Monstro marinho de sete cabeças, enroscado e enroscando as pernas, os braço, pescoço, grito preso, socorro desmaiado.
Logo a peça uniu barro sobre barro e 20 000 léguas submarinas surgiram absurdamente possíveis quando tal mergulho é impossível quimera. Foi um festim de formas que nasciam e renasciam sem parar, criaram um Mágico de Oz voluptuoso e incansável, atravessando versos onde verso não tinha. Cala-te Gyl Ferrys, quem te chamou aqui? E o homem sofrendo seus poemas como se fosse Pedro o inspirador, soando na cabeça, fazendo revelações irreveláveis.

“Esse ser mecânico que sou,
Movido a paixão e de amor,
Anda enlaçado pelos punhos,
Desde o início do mês Junho,
Atado a uma penosa solidão...

Homem-de-lata-robô eu sou.
Ando à procura de um coração...

Atirou-se sobre a tela pronto a desmascará-la. Feito nulo, desejo esvoaçante. Ela voou sobre ele, prendeu-se no teto, encolheu o chão. Virou filme do avesso e era Benjamin Button, com sua cara sem tirar nem por, que saltou velho e permanentemente velho, a juventude sem chegar nem mesmo ao contrário. Canto chão: filme agora não. Agora não.
Quem ouve gemidos, batidos de vento, soando orvalho, se desfazendo lá dentro?
Dom Quixote de unha quebrada, cabeleira esvoaçando, descuidado tambor. Logo outro qualquer voltando ao futuro ou de onde quiser, que futuro não há em verso sem rima, vomitado e não parido como se nascer da boca fosse possível em uma sina.
Jogou-se no ar, pegou fios, machucou as mãos, arrebentou telas, todas já pintadas, o grande arista, pelo chão espalhadas. Coloridíssimas, espirrando tinta. Obras pollockianas com redes de linhas coloridos entrelaçados, transparências desviando a atenção para o fundo do quadro. Não podia ver o fundo do fundo, agora podia e não queria, feia cena de gritos e murros.
Monstros criados pelo viés da imaginação o levavam às profundezas desalmadas. Caiu mosca na sopa, entupiu o ralo, a azeitona da empada fez revoada no estômago, olhou para o lado e viu que a tela só falaria com ele se usasse palavras.
Amargou direto, buscou a forma, duas dimensões contidas, abriu a porta, soou sino, bateu na lata, criou tino que se perdeu na escada.
Dormiu no chão, sonhou cavalos montando ventos, cortou as asas, virou galo, quebrou a crista, ficou banguela, sofreu as dores, perdeu os amores, conchinhas emborcadas de nada, ficou absurdo, surtou maluco, saiu da fossa, respirou fundo.
Virou escritor.

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