domingo, 29 de maio de 2011

RESVALANDO NAS PONTES




Saiu do buraco de cobras pintassilgando a terra de vermelho. Um vermelho velho e escuro igual aos buracos da saudade que marcavam seus braços gangrenados. Já gritara tanto por socorro que agora demorava a fazer eco dentro do coração que nem gemeu quando viu a luz do lá fora. Era pardacenta e tênue, mais uma teia de aranha que rompe fácil na ponta dos dedos, qualquer ai desfaria tudo e novo buraco com as cobras lúgubres de estranhos e sarcásticos risos se abriria à sua frente. Não haveria ponte que pudesse atravessar. Bastava cair e uma garganta famélica o engoliria sem opção de vomitar, quando muito o regurgitaria para voltar a mastigar no furor da fome insaciável.
Andava na ponta dos pés dos sentimentos atrevidos e permanentes, a ingenuidade ou esperteza demais, o faziam não calar os arroubos, mais e mais, assim permanecia vivo. Fingia aqui e ali que era normal apesar de acordar quando a tarde ia a meio. Fazia de conta que trabalhava enquanto emails desesperados eram enviados de todas as partes do mundo circular onde andava pedindo dinheiro que acabara anteontem. Urgência de tudo e incompreensão de todos. Como alguém poderia entender a alma que buscava amplos campos chafurdando em atoleiros pegajosos, infinitamente cinzentos? De vez em quando uma luz, fogo fátuo a morrer logo ali.
Julgava que caminhava andando em círculos concêntricos cada vez mais apertados, como anda o cachorro atrás do rabo, parte deliciosa de si mesmo. As agulhas poderosas poderiam tirá-lo deste andar cuidadoso onde o medo acompanhava a gargalhada que deveria ser baixa e controlada para pensarem que ria de uma piada vulgar e não da notória falsidade que trazia no bolso. “Você acreditou no que eu disse? É bom, nunca se deve acreditar num homem que não mente”. E ia assim mentindo de grão em grão para encher o próprio papo, o olhar crente do outro a fazê-lo acreditar que era de verdade e não feito de confete e batom que manchavam a camisa e outros escorriam mofados na chuva ácida de suas lágrimas que pensava não existirem mais.
Estava na paz. O fio da navalha de seus sapatos não o incomodava tanto e enchia a boca de comprimidos que engasgavam, mas desciam arranhando a garganta, manietando os buracos cheios de agulhas espetando seu sangue. A crueza era assim mesmo, podia jurar que se sentia bem e lentamente os furos nos braços só deixavam manchas escuras que se pode esconder. Marca indelével do passado que não passa nunca.
Fazia grandes programações onde até caminhadas matinais existiam, sabendo que não existiriam nunca. As saídas noturnas estavam dentro do baú que não abriria. Aqui fora era atravancado e estrategicamente contornado, indo pelos canteiros de flores em vez de caminhar entre o mato que se acumulava nas bordas. Lá dentro acoitavam os insetos gigantes com cabeças humanas espreitando nas esquinas para levá-lo prisioneiro eterno dos buracos fatais.
Ia cobrejando a esmo sem definir o caminho, se mimetizando conforme o interlocutor. Alguns tinham cores surpreendentemente belas e outros, apesar do ouro fosco e por isso mesmo, o encantavam ainda mais. Estava sempre há alguns centímetros do abismo onde os sentimentos seduziam e perdia-se neles num contato atroado, os momentos sem eles se tornavam vazios e descoloridos. Ficava um sapo sem príncipe dentro, coaxar não era seu forte e arrancou o piercing da língua para ver se aprendia, um frio na espinha correu e puxou num safanão para enxergar o sangue que o seduzia ao infinito. Imediatamente viu seus parceiros de cama com os braços lacerados pelas lâminas que produziam os riscos vermelhos que levavam a gritos de orgasmo inigualável.
Cada um é o que é, pensava em momentos de lucidez, se aceitando tal qual era: Um estorvo permanente a si mesmo e não tinha coragem de matar. Deste jeito fugia das noites de becos e ruelas, de festas selvagens cheias de suores e fantasias seminuas por onde andara, lhe dando cada vez mais a sensação que não estava em lugar algum.
Em torno os olhares eram de alívio, embora sempre atentos aos seus gestos como se escravo fosse da vontade dos demais. Era uma estupidez satisfazer aos outros, mas tinham lhe dito que seria o paraíso viver em paz das alfinetadas da mente. Pelo menos para provar que estavam todos errados, se impôs experimentar este novo tipo de tortura, tão acostumado a elas que não deveria ser muito diferente e uma pela outra quem sabe pudesse dormir.
Foi quando o menino desprevenido e puro apareceu vestido de comum lugar virtual. Vinha com aquele sorriso que só se encontra nas crianças bem nascidas de saúde mental, acarinhadas por outra coisa que não a febre que seu pai lhe ofertou numa noite de loucura branca em forma de pó enfileirado.
Poderia se apaixonar por esta visão. Se esforçou bastante, conseguindo afinal encher todos os minutos com ela até que a ansiedade voltou a entupir suas veias de adrenalinemia, deixando-o de sorriso espetado com olhos de segundeiro de relógio.
O menino estava tão distante! Precisava superar várias dificuldades para enraizar este encontro útil e derradeiro em sua vida até então mesquinha, mas daqui para frente gloriosa. Era o que seus instintos metafísicos diziam em cochichados altos brados. O desgraçado do mundo muito caro de atravessar, alguma coisa milagrosa precisava acontecer e o tarô lhe dizia que sim, afinal o definitivo tinha chegado.
Tornou-se urgente e suplicativo aos ouvidos possíveis de levá-lo para tão longe num passe de mágica de cartão de crédito. A interdição imposta por seus atos enlouquecidos o tinha deixado incomensuravelmente longe de qualquer bandeira endinheirada de caixa eletrônico. Foi assim que os dias retornaram ao inferno do “me dá e quero”, derrubando até a muralha da China. Como esta muralha era feita de vime frouxo de mãe quase tão quanto, pronta para ser derrubada por lobo vagabundo. Logo conseguiu seu intento, mas o miserável cartão estava num fundo sem fundo algum e nova peleja se impôs sem solução a menos que...
Remorso e olhar o passado não são coisas que toque a vida para frente, quem quer se estraçalhar faz isso de qualquer maneira, com a ajuda dele ou sem. Tinha sido assim com ele por que outros também não poderiam enfrentar a onça com vara curtíssima? Se há dor, isso não significava nada diante do arsenal bélico do aprendizado. Era por uma causa acima de todas as causas, conforme uma estrela cadente lhe tinha falado sobre este amor que redimia, afinal ali, a um vôo. Precisava alguém ou alguma coisa ser sacrificada, como os sacrifícios eram oferecidos ao deus furioso que aplacava as ondas enormes e engolidoras em priscas eras. O que não acontece se faz acontecer. “Vamos embora que esperar não é saber”.
No dia seguinte estavam na frente do dragão que cuspia fogo lacerante pelas mãos, poros, boca e principalmente pelas intenções reais e executadas. No peito havia um medo, mas um medo banal de pessoas vividas para dentro, com suas próprias agulhadas na iminência de agulhar outra pessoa pelo nariz ou pelas veias, tanto faz.
O Senhor dominante da área cocainômana fazia de conta que era íntimo, isso dá uma segurança bastarda muito elegante e tão falsa quanto um brilhante na bijuteria da atriz. Logo os acertos estavam feitos sem perceber que o buraco desta vez não tinha cobras vulgares, eram todas najas e víboras da melhor espécie, daquele tipo que espreitam antes do bote arguto e envenenador para todo o sempre.
Quem poderá desconfiar de uma camaradagem entre mãe e filho voejando de uma cidade para outra, indo se refrescar no Mediterrâneo como prêmio de férias por amor indissolúvel que vem do ventre e alimenta até a morte? Na bagagem há de ter alguns pertences uma vez que sem roupas íntimas ninguém pode viajar. No meio delas, pacotes muito bem embalados, tão bem que nem um odor vicioso e fugaz haveria de escapar. Não é possível que os cachorros sejam tão cretinos que vão se deixar engambelar por esta quirera, tendo a bolsa uma lingüiça de primeira qualidade, daquelas que, a quilômetros, qualquer cão deseja ardentemente.
Estes Cérberos do inferno!
Logo homens muito grandes, parece até que suas cabeças batem no teto, ou cresceram de repente diante dos olhos atônitos. Também muito fortes, ou fortificados por insígnias federais imensas e duras algemando a consciência dos pulsos.
Grades não são coisas boas de nos defenderem dos buracos e atrás delas se chora um choro longínquo de quem este buraco faltava conhecer.

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