domingo, 20 de janeiro de 2013
A SENHORA E O MENINO
Sob o viaduto agasalham-se os cidadãos rejeitados pela cidade que tem fome. Uma dupla chama a atenção: uma mulher muito gorda tem no colo um menino de idade entre cinco e dez anos. Difícil definir. Ela está recostada no concreto com o menino atravessado sobre as pernas. No sono dele, a cabeça e um braço escorregaram para fora do colo.
De longe o menino viu a imensa figura recortada pelo clarão proveniente do poste da rua, embora alguns galhos do jacarandá que o rodeia coloquem manchas escuras sobre ela. Arrastou o passo, os pés nus limpando o chão. Das Dores não era de brincadeira e o menino não cumprira sua promessa. Não fora feliz.
Das Dores viu o moleque retardar-se. Buscar uma lata amassada e volutear com ela. Esfregou os pés saídos das chinelas rotas com vagar, como touro que se dispõe a uma peleia. Ajeitou as nádegas colossais sobre o exíguo muro e esperou.
Rafael percebeu o tapete de flores lilases, quase luminosas, devido aos olhos que se escondiam procurando desvios. Não teve tempo de achar bonito, nem de verificar que eram flores. A mulheraça atacou-o:
- E aí? Conseguiste?- Deu nada, das Dores. Todo mundo unha de fome, hoje. – A voz saiu firme que boiola não era.
Ela cresceu sobre ele, a banha dos braços batendo no compasso do corpo. Rafael encolheu-se, protegendo o rosto na curva do cotovelo. A mão desceu pesada ao lado do ouvido. Junto com o baque veio um zunido fininho e o escuro. Deu uma vontade danada de entregar-se, mas ficava mal, das Dores pensaria que estava se acovardando. Reagiu. Levantou a cabeça. A mão desceu do outro lado. Chamou-a de filha da puta velha e gorda. Imediatamente ela desabou sobre a mureta e soltou o choro fácil. Rafael respirou aliviado e esfregou a cara ardida: estava tudo bem. Já passara... Já passara.
- Tu és burra, das Dores. – Falava e badalava diante do nariz dela a lata vazia. – Pensa que o pessoal dá comida todo dia? Tá difícil tem um mundéu de casa sem ninguém. Um mundéu de gente com fome. É sábado, esqueceu?
Ela espremeu os olhos com os dedos de unhas curtas, roídas e debruadas de preto. Foi puxando uma ladainha que saía de dentro do peito acompanhada de suspiros, de ais. De arrancos de respiração e um cheiro azedo de fumo.
- Ta ruim... Ta ruim! Vive dizendo isso. Por acaso enche barriga? Por acaso não preciso comer? Tu também precisas... Embora nem tanto já que é mirradinho. Porcaria de mãe tu tivesses que não te fez grande, magrinho assim, não assusta ninguém e dificulta outra atividade que a gente queira arrumar. Não sei onde estava com a cabeça quando te peguei na rua. – Peguei de pena, ouviu? – A voz cresceu: - De pena!
Rafael ouvia de cabeça baixa. Revirava as flores lilases nas quais pisava com desaviso, roubando sua luz, transformando-as numa pasta escura e úmida. O muxoxo da boca mostrava sua contrafeita concordância.
Das Dores calou-se. Enfiou a mão entre os seios e coçou-se sacudindo as tetas num pra-baixo-prá cima acompanhado pelos olhos baços de Rafael.
_ Quem se faz agora, meu lindinho? – perguntou puxando-o junto ao peito, aonde ele foi se chegando já de cara ladeada para não se afogar. Um rido fechando os olhos e estrelas mostrando os dentes.
Passado um minuto respondeu que não se preocupasse, ele era homem e daria um jeito. Ele não tinha prometido que sem comer nunca mais dormiriam? E ela não tinha acreditado?
- Claro que sim, meu pintinho. Claro que sim! – Esfregava os braços do menino, sacudia o corpo a niná-lo em pé mesmo.
Rafael empurrou das Dores escapando das carnes fartas. Atravessou a avenida correndo. Um carro buzinou furioso. Afinal o outro lado. Tudo tem dois lados. A porta do bar botava uma lua clara na calçada, carregada de cheiro de fritura, de queijo derretido, do que não se ousa. A miséria.
Rafael foi entrando meio espremido na parede e escorregou pelo balcão. Foi interpelado pela voz de mando:
-Que é guri? Vai dando o fora!
- Tio, dá um sanduba. To com fome, não comi ainda hoje. Os olhos do homem caem na cara suja, vêem os braços desamparados e os ombros um pouco mais caídos do que de costume.
- Fora! – muda o tom e fala baixo: - Tem muita gente. Volta mais tarde.
O moleque foi saindo devagar, pesando as possibilidades. Na mesinha junto à porta, sentava-se um velho. Acho que já tem uns cinqüenta anos, pensou Rafael, aproximou-se, pediu um troco, ganhou uma moeda. Já servia.
Na rua olhou para das Dores escarrapachada no muro. A noite caíra por completo. A luz do poste tornara-se mais forte e o chão lilás parecia néon. A mulher colocara um pé sobre a mureta e era um milagre que conseguisse equilibrar-se. Estava concentrada vasculhando alguma coisa nos dedos. Rafael lembrou seu cheiro de suor velho, urina choca e sujeira entranhada. Precisava dar um jeito, ela não poderia ficar triste.
Foi até a fruteira na outra esquina. Primeiro pediu e depois roubou a maçã vermelha. Das Dores gostaria. Atravessou a avenida. Desta vez não retardou o passo, chegou triunfante, a fruta escondida nas costas.
- E daí, seu bosta, conseguiu? – A mulher sorria e estendia a mão. Recebeu a maçã que esfregou forte na saia.
Rafael sentou-se entre as flores do chão com o olhar triunfante grudado na amiga. Mais da metade da fruta fora comida quando foi entregue ao menino. Ele deu poucas mordidas e devolveu.
Das Dores limpou a boca com as costas da mão e arrotou. Rafael fez a mesma coisa. Ela declarou que o aperitivo estava bom. Ele sacudiu a cabeça afirmativamente e contou que "seu" Carlos do bar daria comida. De novo a mulheraça atochou-o no peito e embalou-o, em seguida empurrou-o quase o derrubando.
Quando a lua arredondou no meio céu já haviam comido a maçã, um cheeseburger, meio cachorro quente que alguém farto colocara no lixo, duas coca-colas, um yogurte e dois goles de cachaça que bebida boa tem que ser arrematada. Os últimos petiscos foram comprados depois que das Dores vasculhou o cofre dos seios.
Rafael encostou-se nas pernas travesseirosas e fechou os olhos. Ela coçou-lhe a cabeça por instantes e convidou-o a partir.
Abandonaram o círculo de luz caminhando lado a lado. Ele, de vez em quando, chutando uma lata, uma pedra. Tinha colocado os tênis dois números maior que o pé, ela sempre os trazia na sacola. Caminhava balançando de um lado para outro, as coxas batendo enquanto o resto das pernas não se tocava. Às vezes apoiava-se na cabeça do menino.
Chegaram ao viaduto.
Ela sentou ajeitando os trapos de cobertores sob a bunda e puxou-o para o colo. Ele aninhou gostoso, enfiando o nariz no sovaco quente. Das Dores encostou a cabeça no concreto. A noite estava tépida, era bom o tempo da primavera. Do outro lado da avenida os jacarandás derrubavam suas flores em ilhas luminosas e lilases. Demoraria a dormir, podia ninar um pouco seu anjo. Mergulhou o nariz nos cabelos dele e pensou que se amanhã fizesse calor o mandaria tomar banho no lago da praça.
Aos poucos fechou os olhos e cochilou, nem percebeu quando a cabeça e o braço de Rafael escorregaram para frente quase tocando o chão.
Vana Comissoli
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