segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

A NEGOCIAÇÃO

A tarde ia a meio, o sol se entornava pelos campos espraiando lagos ilusórios. O infinito se reconhecendo no pampa. Vazio e verde. Uma incomensurável colcha cobrindo a terra até o horizonte longínquo. Esta era a visão para a qual se abria a varanda da estância. Os dois patrões sentavam-se em amplas e confortáveis poltronas, modernidades que o Coronel Leôncio, dono da casa, trouxera da capital. O chimarrão cambiava entre eles em espaços rítmicos e a conversa variava de acordo com o intervalo das mamadas na bomba e o encher da cuia. Tratava-se de negócios, a solenidade se impunha e, a ocupação com o ritual gaúcho, propiciava tempo para pensar. Reavaliar as ofertas, sopesar os aceites. - Como lhe digo, Coronel Atelfio, o negócio é mui bonitaço, por isso lhe chamei primeiro. Somos amigos de velha data, de lenço vermelho os dois, seria descabido não oferecê-lo em primazia. – Justificava o hospedeiro rasgando-se em gentilezas camufladas pelo tom imperioso da voz, coisa de macho gaúcho quando está arriado de medo. O outro, cerca de dez anos mais jovem, tirou a faca da bainha presa à cinta e palitou os dentes fortes a deixar claro que não era chimango. - Lhe agradeço, bem vejo sua finura que, aliás, de há muito me é conhecida. A verdade é que não vim preparado para tal proposta, pensei em campos e boi. Impõe-se que me explique os detalhes da empresa. É mui grande. O coronel chamou a guria de serventia da casa, costurada ao batente da porta à espera de ordens e cujos ouvidos, por hábito ou desaviso, nada captavam. Fosse ela buscar algo de se mastigar, o estômago reclama. Carne do churrasco sobrado, ou um mogango fervido recém. Logo o anfitrião limpou a garganta fumaceada desde os doze anos por palheiros de sabor acre. Solene, pôs-se à disposição do visitante para os esclarecimentos exigidos. - O que lhe renderá essa empreitada? Sem dúvida seria difícil explicar tim-tim por tim-tim. Nem poderia descrever a alegria e o descanso que usufruíra, não é coisa que se conte. O importante era saber que se tratava de material de primeira e demandava avaliação, conhecer o preço inicial. Custara caro, muito caro: cabeças de gado, um eito de terra, fora as sementes híbridas de pasto das quais era pioneiro. Não as daria por pouco. Coisa boa, resmungou entre dentes, olhos perdido para dentro, me chegou em primeira mão. Lhe afianço: não tinha uso nenhum, a formei lentamente, dentro dos ditames da necessidade e, é claro, do retorno do capital investido. O coronel Leôncio terminou a fala batendo no taco das botas num cacoete que apenas os da casa sabiam denotar nervosismo. Os resultados bem vejo, respondeu o visitante, nas modernidades de sua estância, nos seus setenta anos rijos, no cheiro que vem da cozinha e até nessa erva uruguaia que nunca tinha provado. Excelente, diga-se de passagem. Tem gosto de sangue e fogo derramado no pampa pelos dois lados. O mais velho, dono da cuia, cevou o mate com compridas e aromáticas folhas de capim cidró recém colhido no quintal. Traziam no cerne o doce cheiro do mel da terra. Demorava-se no feito pensando nos benefícios, tão gratos, que vendia agora. Uma saudade prematura lhe trouxe um turvejar dos olhos. Reclamou da fuligem do fogão de lenha que chegara à varanda. Pigarreou, era entrado na idade. Coisa de guasca que não se mostra, coisa do Rio Grande. _ Que lhe posso dizer, Coronel Atelfio? O único motivo que me leva a lhe entregar a menina de meus olhos é a velhice e o que a carcome. Se achega sem pedir licença, me tolhendo o movimento e a prontidão. A cabrita é jovem, tem veias grossas. No más, nada tenho a reclamar. Marialva, esposa do dono da casa, entra com pratos de pé-de-moleque e rapaduras de leite. Que tão bem adoçam o chimarrão amargo que circula no sangue gaúcho. É uma mulher, percebe-se pelo cheiro de flor. Não precisa fazer trejeitos de quadris para os homens respirarem fundo e sentirem-se vivos. Atelfio examina-a de olhos disfarçados: sopesa os peitos, arredonda-se nas nádegas. Avalia o entre-pernas e, com cumprimento cavalheiro, lhe acena las buenas. Sem levantar-se. A senhora não é tão jovem, os quarenta anos a adornam, puseram brilho pela postura do pescoço e das marcas suaves em torno da boca generosa e cortante. De onde as palavras não saem audíveis, mas ferem no silêncio. A lavanda de suas saias alivia por onde passa. O útero, imparido, espera a semente. Faz-se necessária constrição. O “jovem” ajeitou o lenço vermelho, amarrado em laço gaudério, último marco de seus desatinos, dava tempo ao seu interlocutor se refazer de uma emoção que não deveria ser percebida. _ Me dê espaço para uma boa mijada, Coronel. O mate é forte barbaridade. Levanta-se atrás da fêmea. Segue seus rastros. _ Pois é certo que vá. Sabia muito bem o que estava falando. O alívio da ausência é um ar frio de minuano que varre a varanda abrindo pulmões e arrepiando a pele. O ar vem do Uruguai, galopando, lança em riste. Vem da Argentina, argenta subitus, trás na alma o gosto cortante da guerra e da solidão. Leôncio aspira fundo. Geme. Retorna a uma primavera terminal. Nessa noite o senhor da casa cobriu sua mulher como nunca antes. Ela dormiu em paz. A tratativa é lenta, como se caminha no pampa. As tardes se alongam e os homens enchem suas bexigas acostumadas à água amarga que sai da bomba. Luta e guerra. Rio Grande. De alguma forma tudo deve chegar ao fim. Felizmente ou... quem sabe? Quem sabe o cancro se recolhe ao casulo? Quem sabe a idade não rói os ossos? Quem sabe um cavalo mouro... Quem sabe apenas curva e não... Quem sabe? - Coronel, tudo que precisava saber já está sabido, me cabe lhe dar a resposta. – A voz é firme, a mão é dura, as bombachas são largas e as botas cheiram a gordura nova. A meninota da cozinha entrou, apertou as mãos, enrolou a barra da saia entre os dedos. Quem sabe rapadura? Quem sabe pão de aipim? Bons-bocados? Arcanjos? - Saia, saia que não queremos nada! – o dono da casa não pode mais disfarçar o nervosismo. Chegou a hora. Quer realmente fechar o negócio, ou melhor, seria morrer com ele? – Pois sim, Coronel Atelfio, é esperado que se manifeste. - Aceito! A chaleira tomba, água quente espalha-se pelo chão em meio à fumaceira. Os dois homens apertam-se as mãos e batem nas costas um do outro. O contrato está assinado. O vendedor sorri, a pele curtida pelo sol e pelo Minuano parece fosca e a boca logo volta a fechar-se contrita. O comprador arruma as costas arredondadas pelo abandono sobre o cavalo e penteia com os dedos os bigodes fartos que parecem ter escurecido nos últimos dias, não se vê mais as pontas brancas amareladas de fumo. - Só nos falta legalizar a venda. Como se fará isso? - Não se preocupe, amanhã mesmo chamo o advogado e encaminho a separação, depois o senhor pode casar de papel passado, que é minha única exigência. Isso sacramenta a empreitada. Não pretendo reter nem sequer a minoria de minhas ações. Vana Comissoli

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