quarta-feira, 2 de junho de 2010

A DANÇA DO LESTE





O corpo começou a inchar. Ficou um balão. Depois disseram que era efeito Balloné. Vai saber... Tem cada louco por aí!
Na hora não pareceu loucura nenhuma.
Não conseguia se mexer. Era um balão engraçado por que pesava. Mil quilos avaliou.
A cabeça foi esvaziando e os pensamentos diminuindo até sumirem. Branco total. Uma tela deu-se conta quando o filme começou.

É jovem, talvez dezoito ou dezenove anos, se tanto. O deserto espuma calor e as areias perdem-se no horizonte longínquo. Veste branco e não é sujo, é realmente imaculado, menos o turbante da cabeça no típico azul usado por sua raça tuaregue e que serve para cobrir o rosto nas tempestades de areia. Aparecendo, só os olhos negros, tão negros que não se podem esconder.
A cabra bali os estertores da morte provocada pelo gume afiado e rápido do punhal.
É exímia no feito, participa das recepções de boas vindas aos homens, em grandes comemorações pela venda do sal encarregando-se do abate de animais. Nem todas detêm a magia, ela é a mais conhecedora.
Nestes eventos é costume as mulheres pintarem os olhos com Kohl, o conhecido pó negro de sulfato antimônio, por isso os dela estão mais negros do que o habitual.
A longa cabeleira está presa em tranças. O rosto, pintado de vermelho e amarelo e os lábios de azul, forma uma espécie de máscara que serve de enfeite e símbolo mágico. A música usada para expulsar maus agouros soa dentro da tenda enquanto os amuletos protetores dos espíritos solitários que assombram o deserto são reverenciados por suas irmãs.
Preparam-se para descansar seus homens com massagem, fonte de magia e amor e sinal de agradecimento e alegria pelo sucesso do retorno ao lar.
A moça começou os rituais mais secretos enquanto as outras estão nas tendas numa algaravia. É uma Imrad, ou seja, pertence aos “homens livres, o povo das cabras". Lhe cabe ver nas tripas dos animais o futuro das próximas caravanas que partirão tão logo os homens se refaçam.
Jorra sangue do pescoço da sacrificada manchando a limpidez da areia endurecida. Abre a barriga num golpe certo e contínuo até expor as vísceras. O futuro da tribo está em suas mãos. O que as tripas quentes revelariam? Nunca soube.
Uma ordem e um puxão. Está em pé e olhando o homem. Não escapa submissa do olhar dele. O oficial britânico repete frases difíceis de entender com sua pronúncia horrível. Áspera aos ouvidos da pequena adivinha. Pessoa santa para seus iguais que mantinham crenças pré-islâmicas animísticas, como a presença dos espíritos Kel Asuf e a divinização do Qur'an.
Amarra as mãos de Abir Bint Adira com uma corda grosseira. Irrita-se o que o torna mais bruto. Esses malditos árabes não sabem que está proibido matar cabras para bruxarias? Xinga em sua língua de origem, despreocupado se ela entende inglês ou não. Importa apenas punir a transgressão. Desta vez não deixará passar. Foram avisados e teimam em descumprir a vontade de Sua Majestade representada por ele. Uma falta de respeito imperdoável.
Abir ferve de indignação.
Entre o povo nômade, auto intitulados homens livres, Imashagen, a família é composta pelo chefe da tenda, sua mulher e filhos. A sociedade berbere era nas suas origens matriarcal. A mulher tuaregue herdou o costume, sempre desempenhou e desempenha ainda um papel privilegiado na vida social e política. Ela pode escolher seu marido e divorciar-se, libertando-se de qualquer ligação. Desempenha todo o trabalho doméstico, torna-se culta e descansa. É detentora do segredo de todos os medicamentos tradicionais, confiando-o unicamente às suas filhas. É depositária da língua antiga (o tamasheq), é a melhor professora da escrita Tifinagh, e a melhor executante de Imzad, instrumento de cordas que afasta a solidão e os maus espíritos do acampamento. É ela que canta e toca acompanhada pelo tambor de tende, feito da pele das cabras que usam para seus rituais e sobrevivência. Ela é.
Abir Adira, perfeita descendente da ancestral Tin Hinan, a princesa geradora de toda a etnia tuaregue, não poderia admitir tal afronta.
O inglês, respaldado por estirpe superior, segundo sua visão, não é delicado. Ata os pulsos de Abir e monta seu belo cavalo tratado com esmero nas estribarias do quartel.
Ela se debate e cospe, não acerta o alvo. Olha angustiada para as tendas. As falas agudas e o som de um anzade encobrem qualquer possibilidade de ser ouvida.
O sol se põe no deserto. Uma mulher elegante canta com voz aguda. A melodia é estranhamente bela como a noite no Saara. Tais canções datam de longas eras, de séculos atrás quando os tuaregues reinavam nesta terra inóspita. Agora como então, as mulheres transmitem as tradições ensinando poesia e música às filhas. Logo todos estarão sentados em volta da fogueira escutando respeitosamente. Ela não estará.
O oficial monta. Abir não teve oportunidade de observá-lo, apenas olhara o que chama de sua sombra, é indigno olhar o rosto de um déspota. Seu mal poderá entrar na alma contaminando-a para sempre. Só o olhará na hora em que estiver morrendo. Isso ela faria com prazer e a hora haveria de chegar.
O cavalo começa a andar. A moça cerra os dentes de fúria. É indigno ser arrastada como uma cabra. Quase obrigada a ser grata ao cavaleiro por não estar indo a galope. Não é hábito em seu povo o suicídio, mas o assassinato por vingança é. Por isso sente raiva poderosa, raiva mortal.
O frio do deserto à noite começa com o encolher do sol. O inglês parou por minutos para colocar o capote. Nem olhou para ela, como se puxasse um bicho, ou um cadáver. A pele arrepia-se, os dentes logo baterão e sentirá mais do que nunca o valor da fogueira.
Sua esperança é que tenham dado por sua ausência, com certeza virão atrás dela. Não temem os malditos cristãos e suas armas. Já roubaram bastante e estão quase em igualdade de condições e são silenciosos como as cobras que espreitam. Darão o bote certeiro em defesa dela. Este inglês não terá nem tempo de ver de onde veio a lâmina larga de dois gumes com um friso longitudinal e não verá o punho guarnecido por uma peça retangular, que lembra uma cruz. A cruz que ele deve adorar bastardamente. Não é um filho de Alá.
A sede marca presença. O soldado puxa as rédeas e o cavalo estanca. Desce e tira o cantil preso à sela. Bebe deixando a água correr pelo queixo. Abir sente a língua grossa, talvez ele não divida o líquido e a raiva aumenta se é que ainda tem tanto peito para mais.
O homem aproxima-se e estende o cantil. A sobrevivência é o mandamento primeiro do povo das areias escaldantes. Abir aceita, antes faz um estranho gesto místico com a mão. Não abocanha o cantil imediatamente, olha o horizonte que vai perdendo os contornos para a noite.
Alguma coisa brilha no chão. Uma pedra preciosa caída de alguma caravana? O oficial abaixa-se para verificar. É seu bruxuleio de perdição.
A mulher tuaregue levanta a adaga escondida pelo Ichar, a longa e larga túnica que esconde seu corpo e impede a visão do que carrega por baixo. Basta um golpe, é matadora, sabe aonde acertar. Ele apenas tem tempo de virar-se para a moça.
Cai de costas, os olhos abertos, surpresa e raiva dentro deles mesmo assim, já quase vítreos. São verdes e adentram a alma de Abir para sempre.

O estado de sonambulismo, ou fosse o que fosse começou a ceder. Conseguiu mexer as mãos e sente o sangue circulando normalmente. Foi como voltar de um sonho real.
As lágrimas correm sem pejo e uma dor visceral toma conta dela.
Os olhos verdes do marido foram reencontrados na face de um oficial britânico morto.
Imaginação? Brincadeira do inconsciente?
A lei do retorno, do karma, até que haja perdão.




Vana Comissoli

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